MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quinta-feira, 29 de março de 2012

Músicas guardam história dos 463 anos de Salvador


Pesquisador da Ufba aponta declínio em produções atuais sobre a cidade.
Daniela Mercury e Luiz Caldas avaliam inspiração e repaginação das letras.

Jairo Gonçalves e Rafaela Ribeiro Do G1 BA

Samba em Salvador (Foto: Egi Santana)Rodas de samba resistem ao longo dos séculos como símbolo marcante da cidade (Foto: Egi Santana/G1)
Antes mesmo de Caymmi e da axé music homenagearem Salvador, que completa 463 anos nesta quinta-feira (29), o samba já cumpria o papel de descrever e difundir as características da cidade ainda no final do século XIX, segundo relata o antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Milton Moura. No entanto, o pesquisador afirma que atualmente a produção musical baiana, em sua maioria, não contempla mais a cidade como fonte inspiradora.
“Não há novos lançamentos. O mundo do carnaval quase não se refere. Houve um desgaste entre a relação da música com a cidade. Antigamente, se falava de um lugar onde as pessoas mantinham laços afetivos, iam a muitas festas, como o Bonfim, que hoje está em franco declínio. A cidade tinha um carnaval mais aberto ao povo. Isso acabou”, avalia. Outro motivo apontado pelo pesquisador para esse declínio é o crescimento desordenado e o consequente surgimento de problemas sociais.
O cantor e compositor baiano Luiz Caldas compartilha da mesma opinião e acrescenta que a cidade cantada por Dorival Caymmi e Vinicius de Moraes carrega características do contexto vigente quando os artistas escreveram "São Salvador" e "Tarde em Itapoã", respectivamente - a última em parceria com Toquinho. “Se Caymmi compôs sua música deitado em uma rede olhando para o mar, que inspiração pode ter alguém que vê Salvador como está hoje? Existem algumas canções muito boas hoje em dia, mas é claro que a cidade não será retratada de forma poética como já foi”, avalia.
Black Style e É o Tchan! participam do penúltimo ensaio do Psirico (Foto: Fred Pontes/ Divulgação   )Pagode 'Firme e Forte', do Psirico, retrata Salvador
em fase atual (Foto: Fred Pontes/ Divulgação )
No momento atual da cidade, Luiz cita as músicas que fazem sucesso com Márcio Victor, do Psirico, e na voz do cantor Ed City. As composições, para ele, retratam bem a realidade vivida recentemente na capital baiana.
“A canção do Márcio Victor, 'Firme e Forte', mostra muito bem o cenário de Salvador. Se o cara vê o morro descendo com as chuvas e transforma isso em música ele está cantando Salvador, sim. Está falando da realidade da nossa cidade”, afirma. “Salvador é uma mulher bonita, mas muito mal tratada", completa.
No entanto, composições recentes ainda exaltam as belezas e simbologias da cidade, como "Terra Festeira", gravada por Daniela Mercury na época dos 450 anos de Salvador. "Temos uma cidade misteriosa, interessante, que tem muita energia e é completamente inspiradora. A Bahia toda é assim, na verdade. Seu imaginário tem muito a ver com os personagens de Jorge Amado, pessoas comuns e sempre com algo especial, particular. Elas têm uma vontade, um desejo de viver que parece maior do que nas outras cidades do mundo. O que mais me encanta em Salvador é o seu povo", avalia Daniela.
Daniela revela que interpretou a canção realizando um desejo de mostrar e entender os vários olhares sobre Salvador, mesmo que haja problemas e queixas a respeito da cidade. "Me apaixonei [pela música] porque fala todas as coisas lindas que somos, mas esse verso, 'cidade eu hei de amar você', soa como um contraste, como se dissesse que somos tudo isso, mas precisamos melhorar ainda mais, tratar melhor seu povo e sua cidade", diz.
Salvador em ritmos
O pioneirismo do samba, diz o pesquisador Milton Moura, relembra a atuação da líder cultural Tia Ciata, integrante do terreiro de Candomblé Casa Branca, na Avenida Vasco da Gama, hoje considerado o mais antigo de Salvador. “Ela era baiana e migrou para o interior da província fluminense, onde formou em torno dela, na Praça Onze, uma ‘pequena África’, um espaço cultural que se consolidou muito forte. Ali se reuniam muitos artistas da escola de samba”, conta.
Foi a partir da atuação de Tia Ciata que surgiram os termos que hoje definem o samba em “partido alto” e samba “fundo de quintal”. “A expressão ‘partido alto’ surgiu com a reunião das pessoas que faziam samba na parte mais alta da casa dela. Esse era um samba considerado mais sofisticado e envolviam pessoas com mais prestígio. Já o 'fundo de quintal' era feito por aquelas pessoas que faziam um samba tido como mais popular”, explica.
Salvador e a Bahia também foram cantados por Carmem Miranda, que a partir de 1930 ganhou sucesso e levou os símbolos do estado para os palcos americanos, um processo que pode ser representado pela letra “Brasil Pandeiro”, uma composição de Assis Valente. Na letra, versos como “O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada”; “Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato”; “Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará” mostram elementos da Bahia sob os olhares do povo americano, representado pelo Tio Sam.
(Assista ao clipe acima com músicas que homenageiam Salvador)
“Essa divulgação aconteceu nos anos 30 em relação à música radiofônica porque nos sambas, nas festas populares, isso já existia há muito tempo. Existem gravações da segunda década do século 20, que falavam sobre a Bahia, antes mesmo de Carmem. Um exemplo é a carioca Elsie Houston, que surgiu no final dos anos 20. Ela já fazia apresentações na Broadway, Alemanha e França”, relembra Milton Moura.
Autores falavam de Salvador antes mesmo de vir à Bahia. Um deles é Ary Barroso, que compôs “Na Baixa do Sapateiro” sem nunca ter conhecido a cidade. Assim como ele, Dorival Caymmi levou as referências de Salvador a nível nacional. A mais famosa de suas letras é "São Salvador". Mas outras composições dele retratam locais especifícos e simbólicos da cidade, como "Saudade de Itapoã" e "365 igrejas".
Elevador Lacerda (Foto: Egi Santana)Elevador Lacerda é um dos principais símbolos
(Foto: Egi Santana/G1)
Outros lugares simbólicos, a Baixa do Sapateiro, a Barroquinha, a Calçada e Taboão estão na letra de "Bahia com H", que ganhou força na voz de João Gilberto. Caetano Veloso, "filho" de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, escreveu "Bahia, Minha Preta".
O pesquisador Milton Moura lembra que as referências feitas à Bahia em muitas letras - principalmente, as mais antigas - não remetiam às características do estado como um todo, mas falavam a respeito de Salvador - até o Recôncavo Baiano. Muitos compositores e poetas se referiam a Salvador dessa forma porque a cidade já foi chamada de São Salvador da Bahia e Cidade da Bahia.
Na axé music, entre 1984 até o início dos anos 90, o pesquisador Milton Moura destaca Cheiro de Amor, Luiz Caldas e a Banda Mel. Esta última que emplacou sucessos como "Prefixo Verão", "Baianidade Nagô", "Ladeira do Pelô", "Salvador"
Inspiração
Em 2009, Luiz Caldas compôs “Igual a Salvador não há”, uma homenagem à primeira capital do Brasil. O artista diz que a fonte de inspiração vem do povo, com sua forma de falar e seu jeito de se comportar, o que segundo ele, faz de Salvador um lugar único no mundo. “Salvador é um local que você descobre a arte nas coisas. A gente trabalha muito, mas no nosso swing. Muito diferente daquela piada que diz que o baiano é preguiçoso” aponta.
Baixa do Sapateiro (Foto: Egi Santana)Baixa do Sapateiro inspirou letra de Ary Barroso
(Foto: Egi Santana/G1)
O professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), Gildeci Leite afirma que as inúmeras canções que representaram a cidade de Salvador sempre estiveram relacionadas à negritude da população soteropolitana. Além desta, ele também aponta a religiosidade e a forma do povo cultuar seus santos como uma característica marcante de composições de artistas como Dorival Caymmi.
Outro aspecto citado por Leite é a sensualidade dos baianos que, segundo ele, não é algo ruim, mas retrata mais uma das características que serviram como fonte de inspiração para falar de Salvador. “Eu não vejo problema em falar da sensualidade do povo. A questão é que muitas coisas podem ser absorvidas de várias formas. Eu percebo que muitas canções retratam uma sensualidade própria de Salvador. Essa sensualidade negra e mestiça que está presente na cidade”, analisa.
Gildeci Leite também afirma que a tranquilidade que Caymmi ou Vinicius de Moraes cantaram em suas canções e que na época retratava Salvador, não é possível ser encontrada hoje em dia. “Você não vai passar a tarde em Itapuã desocupadamente, ou ficar até meia noite no Rio Vermelho. A tranquilidade não é propriamente um elemento presente hoje. Vários elementos são reelaborados e aspectos como esses são modificados, mas ainda assim, a tradição faz com que isso permaneça vivo”.
O pesquisador também afirma que alguns cantores e compositores continuam cantando Salvador, mas o temor de ficar muito parecido ou ligado a pioneiros como Caymmi faz com que não exista uma produção intensa com a temática. “Ainda é possível fazer música ou literatura com dendê, mas os artistas têm medo de ficar próximo a Dorival Caymmi ou Jorge Amado. Isso porque não têm conhecimento de causa. O dendê quer dizer elemento negro, pois muita gente estereotipa os elementos da cultura negra. A dificuldade é separar exaltação e criação de estereótipos” finaliza.
Salvador (Foto: Egi Santana)No conforto da sombra, morador contempla calmaria do visual na orla da Barra (Foto: Egi Santana/G1)

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