Para não beliscar ilusões, vamos aprimorar a receita do desastre fingindo que o combatemos. Estacione o automóvel, desligue o aquecedor, passe frio e fome. Em suma, obedeça aos políticos e proteja-se. A crônica semanal de Alberto Gonçalves para o Observador:
Sinto-me
resfriado. Metade das pessoas que conheço também. Os leigos dizem que
anda para aí uma virose. Os médicos, pelo menos dois, dizem que isto é o
resultado de quase três anos de protecções, distanciamentos e
clausuras: protegemo-nos tanto que ficámos permeáveis a qualquer
irrelevância.
Os
actos têm consequências, e o intróito acima pretende ser uma analogia. A
fim de enganar pategos, atribui-se a inflação vigente à Covid e à
guerra na Ucrânia. Os senhores que mandam no mundo culpam a Covid e a
guerra. Os senhores que mandam em Portugal culpam a Covid e a guerra. Os
senhores que cumprem as ordens dos senhores que mandam culpam a Covid e
a guerra. E os pategos repetem a cantilena que, com a eventual ressalva
do sr. Putin, isenta toda a gente de comprometimentos na profunda
desgraça em que nos vemos enfiados: a Covid e a guerra.
Pondo
de lado a toleima que já era anterior a 2020, do dinheiro barato às
dívidas em rédea solta, dos “investimentos” públicos à gordura dos
estados, a parte da guerra desmente-se com um simples gráfico, daqueles
que exibem a curva inflacionária lançada para o alto bem antes de
Fevereiro de 2022. A parte da Covid não é muito mais difícil de
desmentir. Mesmo não sendo especialista, ao contrário das incontáveis
personagens que iam às televisões prever o exacto oposto do que acabaria
por acontecer, acho esquisito que, sozinho, um vírus respiratório
consiga fechar fábricas e negócios, prender a população em casa com
salário e conta na Netflix, estrafegar a produção e as cadeias de
distribuição e a oferta face à procura, imprimir dinheiro com frenesim
de modo a patrocinar a empreitada e, por uns tempos, imaginar que a
empreitada não teria custos.
Sucede
que, logo em Março ou Abril de 2020, os custos eram óbvios. Lembro-me
de, numa violação gravíssima das regras então em vigor, dar um demorado
passeio pela cidade com um amigo de infância. Ele mostrava-se fascinado
com a estética: as ruas vazias, as estradas sem carros, os comércios
fechados, o silêncio. Eu mostrava-me preocupado com a ética, e
informava-o de que o intrigante cenário de “Twilight Zone” custaria
caro, e seríamos nós a pagar. As cautelas, que decerto se justificavam
nas famosíssimas duas primeiras semanas, talvez não se justificassem,
com maiores ou menores “emergências” e “calamidades”, nas subsequentes
120. Por algum motivo, em cem anos o Ocidente sofrera dois conflitos
mundiais e três epidemias similares ou maiores sem promover o colapso
deliberado do sistema económico. À época, perante o risco havia
estadistas empenhados em preservar o possível. Hoje, os “estadistas” que
nos tocaram em sorte – leia-se que escolhemos – apressaram-se a
destruir o inimaginável. Foram eles, e não a Covid, que arrasaram a
economia.
E
foram eles, com um orfeão de tontinhos a reboque, a jurar que a
economia não merecia a perda de uma única vida. Suponho que os
“estadistas” confundissem a economia com um curso universitário ou uma
série de colóquios aborrecidos, e se esquecessem que, numa realidade
alternativa à das pândegas financiadas pelos contribuintes, os
contribuintes têm de comer. Não há grande sentido em tentar salvá-los da
doença para os matar com a cura.
A
chatice é o sentido não caber nesta história. Nem a lógica. Nem o bom
senso. Não tivessem caído em desuso, tais minudências levariam a que os
coveiros do buraco em que apenas começámos a cair estivessem a aguardar
julgamento por crimes sortidos. Ou, no mínimo dos mínimos, pedissem
desculpa e a demissão por motivos de incompetência terminal. Nem pensar:
lá fora e cá dentro, continuam nos seus cargos, inchados de razão, a
culpar a Covid por aquilo de que a Covid era incapaz, a culpar uma
guerra que pelos vistos possui efeitos retroactivos, e a adicionar ao
caldo a culpa das fatais “alterações climáticas”, que doravante ajudam a
perpetuar o medo e a legitimar a miséria de todos excepto dos
iluminados que se afligem com elas. Nos EUA, renovou-se há dias o estado
de emergência para a pandemia que o sr. Biden declarou acabada em
Setembro. Na Europa, a generalidade dos países mantém presente a ameaça
dos “confinamentos” e das loucuras que calhar sob os pretextos que
calhar. E em Portugal, coitadinhos de nós, “discutiu-se” um Orçamento
que inaugura uma idade das trevas sem que algum partido admitisse o
elefante na sala.
O
elefante é enorme, tão grande quanto a cumplicidade dos partidos nas
decisões que nos deixaram de rastos, a agradecer a devolução de 125€ de
um saque desmesurado, e a tornar obsoleta, mediante cadeado, a abertura
fácil das latas de atum. Se nos encontramos em descida acentuada rumo a
uma pobreza sem nome devemo-lo, sobretudo, a políticos sem noção e
políticas sem oposição, que assim resolveram, subscreveram e, na maioria
das vezes, aplaudiram. Com entusiasmo, nos casos de PS, PSD e BE. Com
receio de afugentar votos entre um povo mascarado, nos casos de Chega,
IL e PCP. Todos participaram na demência. Salvo murmúrios erráticos,
nenhum questionou a respectiva factura. Agora que vivemos de facto uma
calamidade, os partidos debatem a situação sem beliscar a sua origem –
como o BCE sobe juros não porque, cito uma frase com dois dias, “faz o
que tem a fazer”, mas porque durante anos fez o que não devia ter feito,
ou seja, sujeitar as impressoras a provas de esforço. As impressoras
passaram com distinção. Nós não.
Repito,
que as cabeças são duras e a amnésia galopante: por si, a Covid não
causou nada que um microorganismo dispensável não tenda a causar. O
resto, uma coisa aparentada com um suicídio colectivo, tem mão humana: é
de autoria dos governos que o decretaram, com o aval dos tristes que o
toleraram e dos zelotas, pagos ou voluntários, que o defenderam. Por
cegueira ou desígnio, chegamos aqui por escolha política. E esconder o
que nos trouxe até aqui nunca permitirá descobrirmos maneira de sair.
Pior: para não beliscar ilusões, vamos aprimorar a receita do desastre
fingindo que o combatemos. Entretanto ponha a máscara, estacione o
automóvel, desligue o aquecedor, passe frio e passe fome. Em suma,
obedeça aos políticos e proteja-se. O Inverno será longo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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