MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Percebendo a história: o que foi o liberalismo? Quinta parte: a "liberdade" por decreto-lei.

 



Mais um capítulo do programa desenvolvido pelo professor Rui Ramos para os leitores do Observador. Eis a newsletter:


A monarquia constitucional de 1834-1910: um país de cidadãos iguais (pelo menos formalmente)


As várias facções liberais governaram Portugal durante 76 anos seguidos (1834-1910). Foi o regime contemporâneo que até hoje durou mais, quase o dobro do tempo do Estado Novo (1933-1974). A governação liberal não mudou Portugal no sentido em que o fizeram a emigração e a industrialização da década de 1960 – entre 1834 e 1910, Portugal permaneceu uma sociedade de pequenas aldeias e vilas, com duas ou três cidades importantes, ligadas entre si por caminhos de ferro a partir das décadas de 1850-1870. Mais grave do que isso: o novo regime não inverteu o processo de divergência económica em relação à Europa ocidental iniciado na segunda metade do século XVIII.

Em 1885, quase metade dos mancebos presentes à inspecção militar foram dados como “incapazes” por falta de altura, de peso ou de saúde. Mas os liberais transformaram o ambiente institucional e cultural, o que não foi pouco nem secundário. De um país onde os portugueses pertenciam a grupos com diversos estatutos e em que a principal função do poder soberano era manter esses estatutos, os liberais fizeram outro país em que os cidadãos eram todos formalmente iguais e estavam sujeitos a um poder apostado em criar um mundo melhor. De um país onde o cimento cultural era o catolicismo, os liberais fizeram outro país, unido agora sobretudo pela memória exaltada de um passado comum.

Durante anos, foi hábito dizer que os liberais teriam falhado porque a sociedade portuguesa não dispunha de uma forte classe média e não se industrializou, como a Inglaterra. É um erro, originado pela velha crença, conservada pelos marxistas, de que o liberalismo deve ser simplesmente definido como a dominação de uma classe, a burguesia.

Em Inglaterra, os liberais não conseguiram um monopólio do governo como em Portugal, sendo obrigados a rodar no poder com o Partido Conservador. Na Bélgica, em 1884, os liberais tiveram de ceder o governo ao Partido Católico, que manteve maiorias absolutas no parlamento até 1918. Noutros países surgiram movimentos socialistas, ligados aos sindicatos de trabalhadores, como o SPD (Partido Social Democrata da Alemanha), que em 1912 se tornou o maior partido no Reichstag do Império Alemão.

Em Portugal, enquanto a monarquia constitucional durou, entre 1834 e 1910, os partidos liberais dominaram sempre o governo e as duas câmaras do parlamento. Foi esta hegemonia liberal que fez Antero de Quental, em 1879, notar que Portugal era, na Europa, “o país onde o liberalismo triunfou mais completamente”.

Ao contrário do que geralmente se diz, o facto de a sociedade portuguesa ser pobre, rural e analfabeta foi uma vantagem para os liberais. Os políticos liberais tinham quase todos cursos superiores e eram oriundos de grupos sociais poupados ao trabalho manual. Entre uma população de pobres trabalhadores de enxada, cuja taxa de analfabetismo chegava aos 80%, apareceram assim como os detentores naturais do poder, explorando a seu favor os hábitos de hierarquia e reverência. Não tinham, para se lhes opor, nem uma grande aristocracia terratenente, enraizada nas suas terras, nem uma igreja independente e poderosa. Os padres eram funcionários do Estado e os fidalgos eram proprietários médios, importantes apenas nas freguesias onde residiam.

Os liberais destruíram as formas tradicionais de autogoverno local e construíram um Estado centralizado em Lisboa, no qual arranjaram emprego como funcionários: em 1890, 53% dos deputados eram empregados do Estado. As classes preponderantes na província, dos padres aos lavradores ricos, foram integradas na ordem política através dos requisitos eleitorais do sistema representativo e dos negócios e favores proporcionados pela administração.

O “progresso” liberal pôde assim ser decretado no Terreiro do Paço, e levado às aldeias pelos delegados administrativos do poder central, com o apoio da tropa quando necessário. E a tropa foi precisa, sempre que os governos e parlamentos liberais se atreveram a incomodar os hábitos religiosos das populações do norte do país, ou a fazer-lhes pagar os custos do “progresso” com mais impostos. A revolta minhota da Maria da Fonte, de 1846, foi a mais memorável, mas não a única, na longa crónica de resistência e insubmissão rural.

Em meados do século XIX, os liberais constituíam uma elite burocrática lisboeta. Viviam entre a Arcada, São Bento e São Carlos, isto é, entre as arcadas do antigo Terreiro do Paço onde estavam as secretarias de Estado, as câmaras do parlamento no Palácio de São Bento, e o Teatro da Ópera de São Carlos, financiado pelo Estado para exibir os melhores cantores europeus. Eram só homens, persuadidos, como quase toda a gente na Europa, de que a vida pública não convinha às mulheres (embora a condição feminina os preocupasse muito). Entretinham-se com debates parlamentares e polémicas jornalísticas, no meio de grande tolerância e total liberdade de expressão.

Foi nesse ambiente que Eça de Queiroz publicou O Crime do Padre Amaro (1875) e Guerra Junqueiro a Velhice do Padre Eterno (1885) sem os problemas de censura que certamente teriam tido noutros países europeus. A tolerância liberal, porém, não traduzia um verdadeiro respeito pelo pluralismo. Para os liberais, era preciso ser moderno, e só havia uma maneira de ser moderno, que era a deles. A diversidade de modos de vida provinha apenas de erros que deviam e podiam ser corrigidos.

Os liberais recusaram-se a aceitar os portugueses tal como eles eram: quiseram-nos fazer ser como os ingleses ou os franceses. É verdade que evitaram as violências que poderiam pôr em causa o regime de legalidade e de direitos. Os governos liberais, sobretudo na segunda metade do século XIX, no tempo do grande ministro Fontes Pereira de Melo (chefe do governo entre 1871 e 1877), cultivaram o compromisso e o consenso. Mas nunca se contentaram com o simples estabelecimento de uma ordem jurídica. Os liberais jamais entenderam o papel do Estado como o do proverbial guarda-nocturno.

A tese de que os liberais tiveram problemas porque não cuidaram do povo nem o quiseram integrar na ordem política não é correcta. A verdade é o contrário. Nos meados do século XIX, propuseram-se construir as infraestruturas do progresso, das escolas aos caminhos de ferro e aos telégrafos. Em 1900, a rede de caminho de ferro já chegara mais ou menos à dimensão que teria no século XX. Portugal foi um dos primeiros países da Europa onde o Estado declarou a escolarização primária gratuita e obrigatória, em 1835. Em 1878, os liberais reconheceram o direito de voto a quase toda a população adulta masculina, ao admitir que, além dos contribuintes com mais rendimentos e dos cidadãos instruídos, todos os homens que eram “chefes de família”, mesmo pobres e analfabetos, deveriam votar. Era praticamente o “sufrágio universal”, tal como entendido no século XIX.

É verdade que Portugal não mudou como outros países da Europa no século XIX, o Reino Unido ou a Bélgica por exemplo, onde a maior parte da população passou a trabalhar em fábricas e a viver em cidades. Talvez os liberais não desejassem uma mudança dessas, que muitos, inicialmente, identificaram com pobreza e conflitos sociais (seria, de facto, a base da prosperidade desses países). No entanto, desejavam certamente um país mais “instruído” e mais “patriota”.

Por tudo isso, atormentaram-se muito quando constataram que o povo, desconfiado de um Estado professoral e intrometido, não ia às escolas, faltava às eleições, resistia ao cumprimento dos deveres fiscais e militares, e insistia em manter-se fiel àquilo que, para os liberais, eram “superstições” e “fanatismo religioso”. Quando, a partir de 1878, os recenseamentos da população revelaram uma taxa de analfabetismo de quase 80% para os maiores de 7 anos, esse valor passou a atormentar todos os políticos. Tornou-se costume, nos debates parlamentares, alguém lembrar a suposta indiferença popular. Em 1884, foi Fontes Pereira de Melo, o mais importante chefe político do regime: “o país real, o das montanhas e diferentes localidades, é indiferente a tudo o que nós aqui fazemos”.

Nada disto diminuiu o ardor liberal por mudar o país. Pelo contrário. Resolveram ser ainda mais zelosos. No fim do século, muitos liberais já se consideravam abertamente “socialistas”. Não quer isto dizer que desejassem impor qualquer sistema colectivista, mas que resistiram cada vez menos à ideia de recorrer ao poder do Estado para propiciar transformações sociais e de mentalidades. Na sua ânsia de melhorar a condição do povo, prepararam-se mesmo para desrespeitar todos os hábitos e até o direito de propriedade.

Foi o que fizeram com um dos seus projectos mais ambiciosos, o da “arborização geral do país”, de 1868. Tratava-se de mudar a paisagem portuguesa, então bastante desolada e poeirenta, e de cobrir cumeadas, charnecas e areais com um tapete verde de arvoredo, como nas “nações mais ilustradas da Europa”, isto é, as do norte do continente. O implacável regime florestal causou imensos conflitos com as populações rurais. Mas cem anos depois, no fim do século XX, o projecto de 1868 vencera: 35% do território de Portugal tinha entretanto sido devidamente revestido de floresta – uma percentagem superior à da Alemanha ou do Reino Unido e igual à da França.

O activismo liberal, desde meados do século XIX, agravou o já crónico endividamento do Estado, com as correspondentes ameaças de inflação e bancarrota, e reforçou a associação ao poder político de grupos de interesse, apostados em viver das obras públicas e da protecção estatal. O país dos funcionários públicos, numerosos e lamurientos, e dos contratadores de obras públicas, enriquecidos e corruptos, já existia no século XIX. Tal como o país dos frustrados do progresso, que depois pôde continuar a rever-se nas cenas de Os Maias, o romance de 1888 em que Eça de Queiroz, por vezes involuntariamente, satirizou as pretensões das elites lisboetas e alguns dos seus próprios ideais.

Na próxima edição continuarei a viagem (que comecei há cinco semanas) por esse século liberal que ajudou a fundar o Portugal Moderno.

E já que se fala do novo traçado político do país, pode ouvir o episódio do podcast da Rádio Observador E o Resto é História em que falámos das coligações mais marcantes da nossa história.

Na última edição do programa, conversei com o João Miguel Tavares sobre o cnetenário da marcha de Mussolini sobre Roma. Ouça aqui o podcast.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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