Reproduzo abaixo a conferência de Mario G. Losano pronunciada em 09 de fevereiro de 2004, na Academia Pernambucana de Letras, em Recife. Losano lançou recentemente 'Norberto Bobbio. Uma biografia intelectual', traduzido no Brasil pela editora da Unesp:
"Hoje
faz exatamente um mês que Bobbio morreu. Não consigo assim falar nem do
seu pensamento, nem de sua influência na vida cultural e política
italiana. Prefiro recordá-lo aos colegas da Academia e aos amigos que
hoje me honram com sua presença como a pessoa que foi referência em toda
a minha vida, que plasmou minha formação cultural, que acompanhou as
minhas vicissitudes acadêmicas e profissionais e que, exatamente por
isso, deixa hoje um vazio incomensurável.
"Encontrei
Norberto Bobbio aos dezenove anos, no primeiro curso da Faculdade de
Direito de Turim. Acompanhei suas aulas e me formei em 1962 com uma tese
de direito constitucional em dois volumes; o primeiro volume foi
orientado por Bobbio e foi publicado em 1969: A teoria de Marx e Engels
sobre o direito e o Estado. Com Bobbio, tornei-me depois livre-docente
em 1971, publicando na época o primeiro volume sobre Sistema e estrutura
no direito, destinado a tornar-se uma obra monumental em três volumes.
Em seguida, foi assistente de Bobbio na Faculdade de Direito de Turim,
até quando Bobbio, em 1973, passou à Faculdade de Ciências Políticas,
enquanto eu continuava minha carreira na Universidade de Milão. Com
Bobbio, colaborei também na Editora Einaudi de Turim. Os nossos contatos
foram muito estreitos até os últimos dias do mestre turinense.
"Na
vida de Bobbio, o estudo do direito e o da política sempre estiveram
fortemente conexos. Todavia, na sua vida cultural e acadêmica, o
interesse pelos temas mais jurídicos que políticos dominou numa primeira
fase, enquanto numa segunda fase predominaram os temas mais políticos
que jurídicos. Essa mudança de acentos nos seus estudos se traduziu em
1973 na passagem da faculdade de direito àquela de ciências políticas,
sempre em Turim. Assim, encontrei-o nas salas de aula turinenses
enquanto vivia a "primeira fase" e se interessava pelo positivismo
jurídico e pela filosofia analítica do direito. Por isso, fui por ele
endereçado a Hans Kelsen. Com um gesto de confiança que ainda hoje me
surpreende, em 1959 me confiou a tradução da segunda edição da Doutrina
pura do direito.
"Trabalhar
com Bobbio sobre Kelsen: experimentem imaginar o que pode significar
para um bravo estudante traduzir um autor meticuloso como Kelsen sob a
supervisão de um docente rigoroso como Bobbio, para o qual a clareza da
exposição era um imperativo categórico! Esta necessidade de clareza
restou até hoje como um tormento para mim e, temo, também para aqueles
que trabalham comigo.
"Quando
iniciei aquela tradução, era um estudante do segundo ano de direito e
aquela tarefa grandiosa deixou um duplo sinal na minha vida.
"Por
um lado, fez-me entrar em contato com a Editora Einaudi, aquela que
publicaria a obra de Kelsen e na qual Bobbio era um conselheiro de alto
nível. Foi também Bobbio quem - quando terminei a universidade - me fez
entrar na mesma editora como colaborador. Ali restei até 1985. Naqueles
anos, a editora era uma das realidades mais vivas do mundo cultural
italiano. A curiosidade intelectual de Giulio Einaudi devo também a
publicação em 1969 de um meu livro que fundou a informática jurídica na
Itália (e que foi divulgado também no Brasil, mas essa é uma outra
história).
"Por
outro lado, aquela tradução fez de Kelsen e da filosofia do direito
alemã um tema que me acompanharia por toda a vida. Mesmo poucos anos
atrás, em 1998, Bobbio me confiou a tarefa de recuperar e publicar os
manuscritos do debate entre Hans Kelsen e Umberto Campagnolo, ocorrido
nos anos Trinta durante o exílio de ambos na Suíça. Consegui fazê-lo, e
tive o prazer de levar-lhe, em 2000, a tradução daquele volume,
publicada no Brasil: Direito internacional e Estado soberano. Com um
texto inédito de Hans Kelsen e um ensaio de Norberto Bobbio.
"Bastem
essas poucas menções para documentar uma aproximação pessoal que durou
mais de quarenta anos. É por isso que hoje sinto o desejo de falar-lhes
de modo pessoal sobre Bobbio, porque com ele desaparece um mundo que não
é apenas meu, mas também da minha geração. De fato, entre Bobbio e eu
existiam muitos pontos em comum - por assim dizer - "existenciais",
pontos em comum que hoje não encontro mais na geração seguinte à minha.
Trinta anos exatos separavam-me de Bobbio, nascido em 1909; mas a Turim
dos anos Cinqüenta - os anos da minha universidade - não era no fundo
radicalmente diferente da Turim dos anos Vinte, aqueles da juventude de
Bobbio. Ao invés, os trinta anos que me separam dos meus estudantes, ou
seja, dos anos Cinqüenta aos anos Oitenta, deixaram um sinal de tal
forma radical, aponto de tornar quase incólume o fosso "existencial"
entre mim e a geração seguinte. Freqüentemente pergunto-me o que
conseguirei transmitir a eles desse mundo que foi meu. Bobbio, a seu
modo, transmitiu-me muito.
Mario Losano |
"O que tínhamos, "existencialmente", em comum, Bobbio e eu? Tínhamos, por exemplo, o "piemontismo", entendido como sentido das raízes numa terra bem precisa, o que não impede absolutamente de estar aberto ao mundo. É um sentimento de segurança que tinha experimentado também Cesare Pavese, o escritor amigo de Bobbio e cofundador da editora Einaudi, nascido quatro colinas mais além daquelas nas quais ora está sepultado Bobbio, e onde eu mesmo nasci. Escrevia Pavese:
"É
preciso um vilarejo de origem, nem que seja pelo gosto de ir-se embora
dele. Um lugar assim significa não estar só, saber que nas pessoas, nas
plantas, na terra, existe algo de seu, que mesmo quando você não está
resta a lhe esperar" (Pavese, La luna e i falò).
"Esse
significado das raízes e da continuidade se encontrava nos nomes das
famílias, que perpetuavam nos filhos e nos sobrinhos os nomes dos avós e
tios: o primeiro filho de Bobbio se chama Luigi, como o pai de
Norberto. Hoje, naquelas colinas, as crianças não se chamam mais Evásio
ou Albina, mas sim Samantha ou Christina (todas rigorosamente com "h").
As colinas das quais as famílias partiram no início do século XX para
transferir-se a Turim ou à Argentina são também as colinas onde as
famílias têm um túmulo, as colinas às quais se retorna, vivos, para
breves férias, e mortos, para o repouso eterno na terra dos pais, entre
os familiares que os precederam. Um retorno ao sentido de continuidade.
Por isso, Bobbio quis sobre seu túmulo o nome de seus pais.
"Gostaria
de ler para os senhores uma página escrita por Norberto Bobbio em 4 de
novembro de 1999, ou seja, poucos dias depois de ter completado noventa
anos. Essa página contém indicações práticas, mas revela também qual
fosse seu mundo pessoal. A página não tem título, mas - com suas
próprias palavras - poderia ser intitulada: "Como homem de razão e não
de fé".
"Desta
página transparecem dois traços típicos do caráter de Bobbio: sua
relação de "duvidante" respeito aos valores religiosos e a virtude muito
piemontesa do understatement, de não levar-se excessivamente a sério,
de não exagerar: "esagerôma nen" era um dos seus lemas piemonteses
prediletos.
"Completei
90 anos em 18 de outubro. A morte deveria estar próxima. Para dizer a
verdade, senti a morte próxima a vida inteira. Nunca pensei, mesmo
longinquamente, em viver tanto. Sinto-me muito cansado, não obstante os
afetuosos cuidados dos quais estou circundado, de minha mulher e de meus
filhos. Ocorre-me frequentemente nas conversas e nas cartas usar a
expressão "cansaço mortal". O único remédio ao cansaço "mortal" é o
repouso da morte. Réquiem aeternam dona eis domine. No último belíssimo
coro da Paixão segundo São João, de Bach, o coro, logo após a morte de
Jesus, canta: "Ruhe wohl" (repouse em paz).
"Desejo funerais civis de comum acordo com minha mulher e filhos. Num apontamento de 10 de maio de 1968 (mais de trinta anos atrás), encontro escrito: "Gostaria de funerais civis".
"Creio
que não me distanciei nunca da religião dos pais, mas da Igreja, sim.
Dela me distanciei já há um tempo excessivo, para agora voltar, meio
furtivamente, na última hora. Não me considero nem ateu nem agnóstico.
Como homem de razão e não de fé, compreendo estar mergulhado no mistério
que a razão não consegue penetrar em profundidade, e as várias
religiões interpretam de vários modos.
"Funerais
simples, particulares, não públicos. Recomendo vivamente aos meus
familiares esse meu desejo. Tive na minha vida, também por ocasião dos
meus 90 anos, reconhecimentos públicos, prêmios, várias formas de
honrarias que aceitei, mesmo estando convicto que excedessem meus
méritos. A morte condiz com retiro, comoção íntima daqueles que estão
mais próximos, silêncio. Breve cerimônia em casa, ou, se será o caso, no
hospital. Nenhum discurso. Não tem nada de mais retórico e irritante do
que os discursos fúnebres.
"Depois,
o transporte a Rivalta, para ser sepultado no túmulo de família. Na
lápide, apenas a inscrição "Filho de Luigi e de Rosa Caviglia". Gosto da
idéia de que sobre minha lápide meu nome apareça junto aos de meus
pais. Meu pai, de Alessandria, foi o iniciador da família Bobbio de
Turim; ele fez construir, no vilarejo de sua mulher, que muito amou, o
túmulo de família. Meu nome, unido àquele de meus pais, além de tudo dá
um sentido da continuidade das gerações.
"A
família dê notícias da morte após ocorridos os funerais, com um
necrológio composto com palavras simples, com as quais em geral são
escritos os necrológios de pessoas comuns:
"Ausente ao afeto de seus queridos.
Norberto Bobbio
Professor emérito da Universidade de Turim. Senador vitalício.
A família dá o triste anúncio...".
"Assim
foi feito. Durante uma manhã e uma tarde, em Turim, o féretro de Bobbio
restou exposto na aula magna da Universidade, visitada por uma fila de
turinenses que inundava os pórticos do primeiro andar, a escada, o pátio
e a rua defronte. Depois, numa fria manhã de janeiro, poucos carros
partiram na direção das colinas de Alessandria, para o povoado de
Rivalta Bormida, ao qual sempre Bobbio voltava nas férias de verão.
"Em
julho de 1995, esse povoado nomeara cidadão honorário o Bobbio de
oitenta e seis anos. Ali ele chegara num dia de calor, acolhido pela
banda local. Extraíra as típicas folhinhas que carregava - aquelas nas
quais esquematizava aulas, conferências, discursos públicos - e deixara
fluir as recordações de uma vida intensa que cobrira um século inteiro.
Eram as suas recordações pessoais, iniciando pela banda musical que
naquele dia tocava em sua honra, e da qual, ele, quando rapazinho,
escutava as provas não longe de sua casa. A banda que toca para você:
máxima honra concebível num município rural. Talvez recordem um filme
italiano no qual Dom Camillo, padre, ao deixar a pequena cidade de
origem, parte de uma pequena estação vazia; mas o prefeito comunista,
Peppone, e os cidadãos comunistas, o esperam na estação depois, para
saudá-lo - e esperam-no com a banda. Numa cidadezinha, com a banda
pode-se exprimir aquilo que não se consegue dizer com um discurso.
"Um
dos filhos de Bobbio, Andrea - aquele professor de informática na
Universidade de Alessandria, onde também eu ensino; aquele mesmo que
(décadas atrás) eu escutava soar flauta doce na sala ao lado do
escritório de Bobbio, quando o visitava - encontrara e lera essas
folhinhas na mesma praça de Rivalta Bormida, onde, num dia de agosto de
nove anos antes, o próprio Bobbio as lera, decerto completando-as com
recordações e comentários. Andrea Bobbio as lera dessa vez como o adeus
do cidadão honorário que, no fundo, mudava apenas de casa: daquela
localizada no início da cidadezinha, à direita da rua principal, para o
túmulo de família, no cemitério ao final daquela mesma rua.
"Convido-os
a percorrer juntos essas folhinhas para descobrir um outro vulto do
filósofo agudo, do professor rigoroso, do pensador político que soube
ser a consciência da Itália que saía da guerra destruída nos bens e
dilacerada no espírito. Um vulto bondoso, de um homem das colinas ligado
às suas raízes; de um homem que, mesmo quando evoca sua infância,
reafirma os valores e as escolhas que o guiaram por uma vida
longuíssima.
"Nunca
me considerei um homem importante. Considero-me sobretudo um homem de
sorte. Sorte pela família na qual nasci. Sorte pela família que Valéria e
eu construímos, mais por mérito de minha mulher do que meu, pelos
professores, pelos amigos e discípulos que tive e, por que não, por essa
cidadezinha pacífica e trabalhadora, na qual passei tantos dias de
minha vida. Sorte também porque transcorri incólume o curso da terrível
história do século XX. Incólume, quando muitos sofreram prisões e
torturas. Sorte ainda por esses anos nos quais aqui chego, um tanto
desgastado, mas ainda capaz de degustar a música da banda de Rivalta."
"Dona
Valéria era, para nós, estudantes e depois amigos, uma sucursal de
Bobbio; para ele, era a porta de acesso ao mundo externo, no qual o
ajudava e do qual o protegia. Havia sido ela a contar-me da época na
qual eram noivos, antes da guerra. As duas irmãs Cova eram convidadas
para passear nas montanhas pelos dois noivos, Norberto Bobbio e Roberto
Ago, que talvez alguns de voces recordem como professor de direito
internacional. Eram muito monótonos, confessava: caminhávamos na
montanhas durante horas, eu e minha irmã atrás; Norberto e Roberto,
adiante, discutiam sobre Kelsen. Casaram-se em 1943: as duas irmãs com
os dois kelsenólogos. O declínio de Bobbio começou em 2001, quando a
morte de Valéria o deixou desorientado diante de um mundo que amava cada
vez menos.
"Nunca
me levei excessivamente a sério. É preciso olhar também a si próprio
com distância e ironia. Benedetto Croce, mestre da nossa geração, dizia
muito sabiamente que é preciso ter amor às coisas, não a si mesmo, que
quanto mais se amam as coisas, mais se consegue a distância de si mesmo
[...]. Esse retorno a Rivalta abriu a estrada às recordações de infância
[...], as recordações da idade da inocência, do início da grande
aventura, da viagem na descoberta do mundo protegido pelo calor dos
afetos, [...]a família de minha mãe, a Primeira guerra mundial e a
aquisição da casa em 1916, a festa de São Domingos, o jogo de bola, as
corridas na direção da colina, o rio e os passeios de bicicleta, a
Segunda guerra mundial, a ocupação alemã e a Resistência, a guerra civil
[...]."
"Essa,
sobretudo, é a parte do discurso que, provavelmente, falando na praça,
Bobbio deve ter enriquecido com recordações pessoais. São as recordações
que se concluem com a alusão à guerra e às lutas da Resistência:
concluem-se, assim, com os eventos que iniciam minhas lembranças de
criança das colinas. São as recordações que assinalaram também minha
geração e que encontro em intelectuais daquelas terras, como Giorgio
Bocca e Giampaolo Pansa, e tantos outros. Mas que não encontro mais nos
meus alunos e nos meus sobrinhos. São recordações de um mundo que
terminou para sempre, mas que deixou uma herança. Uma herança, em
primeiro lugar, dentro de nós, uma certeza, uma força a ser alcançada
nos momentos difíceis.
"Dos
textos publicados daqueles apontamentos de 1995 falta, porém, uma frase
que eu encontro em outro lugar e que é fundamental para indicar que em
Bobbio a tensão moral nunca faltava: nem mesmo nos momentos de distensão
e de intimidade, como provavelmente era aquele dia de agosto em Rivalta
Bormida.
"Em
1995, estava em curso o acre debate sobre o revisionismo histórico e,
em particular, sobre a reavaliação dos mortos fascistas, em especial dos
mortos da República de Saló. Aquela república, na realidade, abrigava
um governo fantoche de Hitler e, com a queda da Itália mussoliniana,
recolhera o melhor e o pior dos fascistas: sob suas bandeiras tinha quem
morresse por extrema coerência com um ideal vencido e quem morresse
porque nada mais tinha a perder. Em 1995, como hoje, a direita
triunfante colocava no mesmo plano os "jovens de Saló" e os membros da
Resistência, quem lutava para o fascismo e quem lutava contra o
fascismo. Sem dúvida que, no plano humano, aqueles homem mortos muito
jovens - de uma parte e de outra - merecem a mesma compaixão; mas no
plano político é necessário saber distinguir. E naquele discurso de
1995, recordando a "guerra civil", Bobbio acrescentou algo que não
encontro nos jornais de hoje: "A Segunda Guerra mundial, a ocupação
alemã e a Resistência, a guerra civil. Esqueçamos, mas não confundamos,
quem esteve do lado justo e quem esteve do lado injusto, mesmo que quem
tenha estado do lado justo tenha cometido injustiças". (Essa frase
desapareceu) A escolha de campo não pode ser cancelada pela compaixão
pela morte. Os mortos são iguais, as idéias pelas quais se morreu, não: o
que teria sido da Itália, da Europa, do mundo, se, ao invés da
Resistência, tivessem vencido os "jovens de Saló"?
"Deixou-me
negativamente impressionado o modo pelo qual o jornal "La Stampa" - o
jornal com o qual Bobbio colaborava - refere essas palavras em 13 de
janeiro de 2004, numa página inteiramente dedicada aos funerais de
Bobbio.
O
jornal simplesmente as elimina do texto dos apontamentos de 1995.
Coloca tais palavras em evidência sobre o título, mas no título
principal, em página inteira, delas oferece uma versão distorcida:
"Bobbio, a última mensagem: também os justos erraram". Bobbio dissera
exatamente o contrário: dissera que também os justos cometeram
injustiças, mas não por isso a posição deles era menos justo. Pedira
para não confundir: foi em vão.
"As
recordações de infância retornam depois com força. Daquelas raízes
aldeãs nasce uma visão cosmopolita. Aquelas recordações evocam o tempo
circular do campo, nos quais se sucedem estações, colheitas, gerações;
nos quais toda vida é um ciclo que se abre com os antepassados e se
encerra com os descendentes, que iniciam por sua vez um novo ciclo.
Eis
assim que hoje tenho a impressão de que esse "tempo circular", esse
prosseguir de ciclos - que torna comuns a experiência de vida de Bobbio e
a minha mesma, de nós, "homens de colina" - tenha sido interrompido.
Que isso tenha sido substituído pelo tempo linear dos meus estudantes
pós-modernos, imersos num eterno presente.
"Para
terminar: permitam-me fazer algumas considerações finais de caráter
geral. 1. É necessário manter as próprias raízes. Os desenraizados têm
problemas. As raízes são possíveis somente na cidade de origem, na
terra, não no cimento da cidade. 2. Somente na cidadezinha de origem
existe o próximo. Não se pode amar todo mundo, senão de forma muito
abstrata. Pode-se amar apenas o próximo. Numa cidade grande, o próximo
não existe. 3. Em Rivalta brincava com crianças do lugar que não sabiam
falar o italiano, andavam descalças, vestiam-se com camisinhas e calções
amarrados com cordão. Nunca senti nenhuma diferença entre nós, os
senhores, e eles, os camponeses. Aprendi que os homens são iguais.
"São
mais iguais que diferentes. Aprendi a dizer não a qualquer forma de
racismo, de ódio de clã ou de raça, a doença que infesta o mundo.
Aprendi que se uma mãe de uma tribo africana chora e se desespera pela
morte da criança, chora da mesma forma que uma mãe italiana ou
americana."
"A
conclusão do discurso de 1995 traz Bobbio à conclusão da vida, àquele
pensamento da morte que, dois anos depois, evocaria suas últimas
vontades: "Para dizer a verdade, senti a morte próxima a vida inteira".
"Voltando
ao princípio: aprendi que não se deve olhar de cima, mesmo quando a
banda toca pra gente. Para cada um chegará a hora na qual, assim como
para todos os outros, tocará, não a banda, mas o sino."
"Somente
as igrejas têm sinos. E o sino que tocou para Bobbio repropõe sua
sofrida relação com a religião. Nas suas últimas vontades lemos essas
palavras: "Creio que não me distanciei nunca da religião dos pais, mas
da Igreja, sim".
Em
1997, Bobbio encontrara um velho amigo e colega, que ensina na
Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Alessandria: dom
Maurílio Guasco que, por sinal, é um amigo do Brasil, país que visita
freqüentemente, para participar dos trabalhos da CPT (ou conferência
episcopal?). Discutiam sobre o paraíso, no qual evidentemente dom Guasco
acredita. Diante da observação do padre ("entendi que, na sua opinião, o
paraíso não existe"), o racional Bobbio respondia: "Sou apenas um
duvidante". Por isso Dom Guasco alerta para quem queira dele fazer um
"crente anônimo", atribuindo-lhe uma religiosidade que Bobbio não tinha.
Mesmo a referência à "religião dos pais" nas suas últimas vontades deve
ser interpretada como referência "à história comum, tecida pelas
gerações das quais fazemos parte. É significativo que tenha querido os
nomes do pai e da mãe no túmulo: considera a família inserida numa
história que está imersa, por sua vez, numa cultura cristã. Ele, assim,
dela se sentia participante". Em outras palavras, "admitia plenamente a
possibilidade de procurar respostas ao mistério da vida e da morte
através das várias religiões. Mas por si só escolhera, ao invés, a
razão, a racionalidade". Era, como Bobbio mesmo escrevera, um "homem de
razão e não de fé": onde por fé entenda-se qualquer crença absoluta,
tanto religiosa, quanto política.
"Até
aqui vimos como Bobbio sentia suas raízes no Piemonte. Mas como
respondia o Piemonte - e, em especial, Turim - a esse seu apego? Minha
sensação é a de que os turinenses de todas as classes e de todas as
ideologias tenham sentido de especial modo o desaparecimento de Bobbio
por dois motivos. Em primeiro lugar, porque Bobbio, das colunas do
jornal municipal, "La Stampa", sempre estivera presente no debate
político com posições razoáveis e racionais. Era, assim, uma presença
constante nas casas de todos. Em segundo lugar, Bobbio era uma das
glórias turinenses. E em um ano, de janeiro de 2003 a janeiro de 2004,
os cidadãos de Turim haviam perdido três figuras centrais do século
apenas terminado.
Inicialmente,
falecera Gianni Agnelli, a encarnação do espírito empresarial
piemontês, o rei republicano no ápice de uma indústria que dera a Turim o
orgulho de ser a capital italiana do automóvel, compensando-a em parte
do trauma nunca superado de não ser mais capital desde 1861. Depois,
desaparecera Alessandro Galante Garrone, limpíssima figura de
intelectual, que da magistratura passara à cátedra de história,
contemporâneo e amigo estreitíssimo de Bobbio e, com Bobbio, consciência
crítica da vida política italiana.
Também
essa fora para mim uma dura perda, e assim escrevi a Celso Lafer, de
Recife, em novembro de 2003: "Hoje, falando ao telefone com minha mãe,
soube da morte de Alessandro Galante Garrone, um amigo fraterno de
Bobbio e um de meus mestres dos anos universitários: foi Galante Garrone
a abrir-me as portas da então mítica revista "Il Ponte". Tínhamos eu e
ele encontro marcado para a minha volta do Brasil. Foi embora uma outra
pessoa da tríade que, com Bobbio e Treves, guiaram minha juventude".
(Recife, 2.11.2003) Não imaginava que, poucas semanas depois, o
desaparecimento dos meus três mestres completar-se-ia com a morte de
Bobbio.
"Creio
que o desaparecimento dessas três figuras tenha assinalado a conclusão
de uma época: aquela da guerra, da Resistência e do renascimento
democrático e econômico. Com eles, foi embora não apenas meu pequeno
mundo pessoal, mas o mundo de uma geração. Com eles se encerrou o século
XX e uma época de paixões políticas violentas, mas também de construção
do Estado democrático. O novo século se abriu num clima de crise
política e moral, no qual não se escutam mais aquelas vozes da
consciência que, com Bobbio, parecem ter-se apagado. A nova realidade
política italiana preocupava Bobbio. Sobre o assunto faláramos
longamente em 1995, quando me entregou o volume de Carlo Violi com a sua
bibliografia. Nele escreveu a seguinte dedicatória: "Com muitas
recordações e poucas esperanças".
"Restaria
a dizer ainda muita coisa. Mas talvez melhor parar nas recordações
daquele dia de janeiro, com as colinas nuas e a neve margeando a
estrada. Para o Bobbio "mortalmente cansado" a morte chegava como uma
liberação. Esse último cortejo era como ele quis: a família, os amigos,
sua cidadezinha. Pouca gente. O silêncio do campo. Ele teria gostado dos
versos de Hölderlin, o mais filósofo dos poetas, extraídos da poesia
intitulada Lebenslauf (etimologicamente, "curso da vida"). "Para o alto
tendia o espírito, - escreve o poeta, - mas a dor o dobra com mais
força. Assim percorro o arco da vida e volto para lá, de onde vim".
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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