Amália, herdeira do trono, está na mira da Mocro Máfia, que trafica drogas para vários países da Europa. O grupo já assassinou denunciantes e jornalistas e gerou o terror nos Países Baixos. Ana Kotovicz para o Observador:
Antes
de celebrar o fim do ano, Amália fará 19 anos. Se nada mudar na sua
vida, a jovem — que é também herdeira da coroa holandesa — festejará a
data trancada em Huis ten Bosch, o palácio do século XVII onde vivem os
seus pais, o Rei Guilherme e a Rainha Máxima, e de onde está proibida de
sair. Em setembro, Amália, como muitos estudantes no final da
adolescência, deixou a casa dos pais, na Haia, para ingressar na
Universidade de Amesterdão. Apesar de ser a primeira na linha de
sucessão ao trono, mudou-se para um apartamento com outras jovens
universitárias numa tentativa de ter uma vida dita normal. Já tinha
surpreendido o país, em junho de 2021, quando, numa carta dirigida a
Mark Rutte, chefe do Governo, abdicou da mesada real.
A família real holandesa. Amália está no centro, ladeada pelas irmãs
Desde
então, a vida de Amália mudou. Em setembro soube-se que estava na mira
de uma máfia ligada ao tráfico de droga na Europa — a mesma que já visou
o primeiro-ministro Rutte, um ministro belga, e que assassinou
jornalistas e advogados — e, em outubro, o problema agravou-se. Amália
está, de novo, na mira da Mocro Máfia e as autoridades neerlandesas
acreditam que há um risco real de ser sequestrada. Guilherme e Máxima
falaram ao país e explicaram a decisão tomada: a princesa regressaria a
casa por questões de segurança, com aulas à distância, como em tempo de
pandemia. O que ficou por dizer foi o motivo que levou os traficantes a
focarem-se em Catarina Amália Beatriz Carmen Vitória, princesa de
Orange.
Amália e o Rei Guilherme
Uma
princesa a ser sequestrada por narcotraficantes parece uma história
mais adequada ao continente americano, seja à Colômbia de Pablo Escobar
ou ao México de El Chapo, mas é na Europa que está a acontecer,
acompanhada de uma escalada de violência nas ruas da capital
neerlandesa. Os Países Baixos arriscam-se a ficar com o carimbo de narco
Estado, depois de nos anos 1960 serem vistos como o paraíso das drogas
leves, graças à legislação que facilitava o consumo de haxixe num Velho
Continente onde, noutros países, isso simplesmente não era possível.
Essa permissividade em relação ao consumo de alguns tipos de drogas
pode, na verdade, ajudar a explicar os momentos de terror com que a
população foi confrontada nos últimos meses e anos.
Máfia marroquina. Como o nome de um livro chegou aos relatórios de polícia
Mocro.
É assim que os jovens imigrantes de descendência marroquina se chamam
uns aos outros, uma gíria que vem, pelo menos, desde os anos 1990 e que
tem um toque depreciativo. Foi já no século XXI, em 2013, que Mocro,
associado à máfia, ganhou segunda vida.
Dois jornalistas neerlandeses, Martijn Schrijver e Wouter Laumans, escreveram o best seller “Mocro Maffia”, mais tarde adaptado a série televisiva
de enorme sucesso nos Países Baixos — onde chegou a ser comparada a
“Narcos” (Netflix, 2015), a série que conta a vida de Pablo Escobar. Daí
em diante, Mocro Máfia passou a ser a designação usada pela imprensa e
pelas próprias autoridades policiais para se referirem aos grupos
organizados de imigrantes marroquinos, de terceira e quarta geração, que
operam nos Países Baixos e na Bélgica.
“É calão. Os jovens marroquinos chamam-se mocro uns aos outros”, explicou Wouter Laumans, numa entrevista de 2019.
“Lembrámos-nos de usar Mocro Máfia porque engloba tudo aquilo de que
fala o livro e agora vejo a polícia a usar a expressão nos seus
relatórios. Mas não são apenas marroquinos, são jovens a crescer em
zonas de Amesterdão onde os turistas não entram”, disse o autor do
livro, citado pela BBC. “Não têm as mesmas oportunidades, mas têm
aspirações e procuram fazer carreira no submundo.”
O
jornalista, especializado em histórias de crime, acredita que o
aparecimento destes grupos em Amesterdão está ligado às oportunidades
que surgem (ou não) na sociedade. “Não são diferentes de banqueiros ou
jornalistas, querem fazer dinheiro. Como não são bons a jogar futebol e
não têm cérebro para lutar no mundo, este é o meio que encontram. Não é
apenas um problema de droga, é um problema social”, acrescentou Laumans.
A
Mocro Máfia não é uma rede única de traficantes, como o Cartel de
Medellín, de Escobar, ou o Cartel de Sinaloa, de El Chapo. É uma
designação geral para as várias organizações criminosas da região, com
muitos gangues rivais a operar no mesmo território. Com ligações
privilegiadas aos cartéis colombianos e mexicanos, a cocaína chega aos
portos belgas e neerlandeses e, dali, segue para o resto da Europa.
Atualmente, a Europol
considera que os dois países constituem o centro nevrálgico do tráfico
de cocaína na Europa, ficando com uma posição que outrora era ocupada
pela Península Ibérica.
“Começaram a vender resina de cannabis”, explicou à France 24
David Weinberger do Instituto Francês de Assuntos Internacionais e
Estratégicos. “Tornaram-se especialistas em contrabando e alguns deles
ramificaram-se para a cocaína, muito mais lucrativa”, explicou o
investigador, especialista em tráfico de drogas, alertando para o facto
de a Mocro Máfia ter conseguido acabar com um monopólio controlado por
organizações mafiosas italianas como a ‘Ndrangheta. Agora, domina o
mercado, como atesta a Europol.
“O
epicentro do mercado de cocaína na Europa mudou-se para norte. O
aumento do uso de remessas em contentores a partir dos portos de alto
volume da Antuérpia, Roterdão e Hamburgo consolidou o papel dos Países
Baixos como ponto de paragem e levou a que a zona costeira do Mar do
Norte ultrapassasse a Península Ibérica como principal ponto de entrada
da cocaína que chega à Europa”, lê-se no relatório da Europol de 2021 sobre esta droga.
Querer
controlar o submundo e os portos de Antuérpia (Bélgica) e de Roterdão
(Países Baixos), fundamentais para quem quer distribuir cocaína pela
Europa, leva à violência — e essa passou as fronteiras do submundo. Isso
é visível nas ameaças atuais à princesa de Orange e a Mark Rutte (que
foi proibido de passear na sua bicicleta e de fazer as deslocações entre
casa e o seu gabinete utilizando esse meio de transporte), ou na tentativa de sequestro, em setembro, de Vincent Van Quickenborne, ministro belga da Justiça, que abraçou a causa de combater o narcotráfico.
Mas
foi antes, a partir de 2019, quando jornalistas e advogados começaram a
ser assassinados em plena rua e em plena luz do dia — entre eles Peter
R. de Vries, figura pública que apaixonava o país — que os alarmes
soaram mais alto do que nunca em Amesterdão. A guerra dos gangues era
mais do que isso.
O sítio onde Peter R de Vries foi baleado tornou-se local de culto
Narco Estado 2.0. Menos grave do que o México, mas a rolar como uma bola de neve
“Chamo
os Países Baixos de narco Estado 2.0.” As palavras são de Jan Struijs,
presidente de um dos maiores sindicatos de polícia do país, o
Nederlandse PolitieBond. O Observador contactou o sindicato, mas devido a
elevados pedidos de imprensa estrangeira, a resposta passou por remeter
o jornal para declarações de Struijs à imprensa do país. Resposta
idêntica chegou das autoridades policiais neerlandesas.
“Não
somos o México, com 14 mil cadáveres, mas há, na nossa economia
paralela, um atentado à ordem pública”, referiu o presidente do
Nederlandse PolitieBond, afirmando que existe um número nunca antes
visto de pessoas que recorrem a segurança pessoal, como políticos,
juízes, promotores, polícias ou jornalistas. “Há um risco grave com o
crime organizado. É um problema enorme, que está a ser abordado em
várias frentes, mas temos um longo caminho a percorrer.”
A opinião de Strujis não mudou muito nos últimos anos. Em 2019, à BBC,
o sindicalista já usava os mesmos termos quando falava da morte de Derk
Wiersum, um advogado que representava Nabil B., membro da Mocro Máfia
que se dispunha a revelar os seus segredos em tribunal, no julgamento
Marengo, o mais mediático dos últimos anos. Pai de dois filhos, Wiersum,
44 anos, foi assassinado à porta de sua casa, atingido na cabeça, em
pleno dia. A mulher assistiu a tudo.
A partir desse dia, advogados e procuradores envolvidos em julgamentos de narcotráfico passaram a ter proteção policial.
“Se
olharmos para a infraestrutura, para o dinheiro angariado pelo crime
organizado e para a economia paralela… Sim, temos um narco Estado”,
considerou Jan Struijs, opinião que mantém até hoje.
A morte do advogado, do irmão da testemunha e do jornalista que era uma estrela pop
O
advogado não foi o primeiro a ser abatido por narcotraficantes. Assim
que o nome de Nabil B. foi conhecido, o seu irmão, sem relações
conhecidas ao submundo, foi assassinado. No entanto, foi preciso a morte
de Wiersum para a sociedade reagir. “Wiersum era um advogado branco” e
era visto, entre as elites do país, como “um deles”, defendeu Yelle
Tieleman, jornalista neerlandês de investigação, ao The Guardian.
“Foi nesse momento que todos no governo perceberam que isto era sério” e
que o narcotraficante Ridouan Taghi “estava a retaliar não apenas no
submundo, mas também na sociedade civil”.
Red Light District, Amsterdão
A
história de Nabil B. resume-se em poucas linhas: trabalhava para
Ridouan Taghi, um dos homens mais procurados do país, quando teve de
orquestrar a morte de um elemento de um gangue rival. Por engano, foi um
amigo de infância de Nabil quem acabou morto. A culpa levou-o a
tornar-se testemunha da coroa holandesa no julgamento Marengo — nome
escolhido aleatoriamente por um computador —, que decorre até hoje. Os
réus são 16 narcotraficantes e Taghi. Se o assassinato do irmão de Nabil
chegou aos jornais, a morte de Derk Wiersum, a 18 de setembro de 2019,
mudou tudo. Meses depois, em dezembro, Taghi, que se encontrava a monte,
foi detido no Dubai.
“O crime organizado passou dos limites”, disse o então ministro da Justiça
Ferdinand Grapperhaus, considerando que um ataque a um funcionário do
tribunal é também um ataque ao Estado Democrático de Direito. “A
segurança destas pessoas não pode ser sequer questionada.”
O
Rei Guilherme repetiu as mesmas palavras, reforçando a ideia de que o
país estava perante um ataque ao Estado de Direito. Mark Rutte
considerou o assassinato perturbador. A autarca de Amesterdão, Femke
Halsema, falou em violação do Estado constitucional: “O assassinato de
um irmão de uma testemunha da coroa foi frio. Assassinar um advogado é
ainda mais baixo.” Em resposta ao sucedido, o ministro Grapperhaus
aumentou o orçamento e os recursos humanos alocados à luta contra o
crime organizado.
Nas
janelas, a fotografia de Wiersum aparecia pendurada um pouco por todo o
lado e os advogados eram aconselhados a usar coletes à prova de balas.
O
jornalista de investigação Peter R. de Vries, que tinha recusado
proteção policial depois de em maio de 2019 ter sido avisado de que era
um alvo de Taghi, afirmou que os narcotraficantes queriam passar “uma
mensagem de terror”, que servia para assustar a testemunha e qualquer
pessoa que pensasse ajudá-la. Mais tarde, em 2020, aceitaria ser
consultor da equipa de Nadil B. porque, argumentou ele, a testemunha
telefonou-lhe pessoalmente e queria “enviar um sinal claro aos
assassinos de Reduan B. e Derk Wiersum”. Vries seria assassinado em
2021.
Peter R de Vries foi assassinado em 2021
Baleado
a 6 de julho, depois de uma aparição televisiva na RTL Boulevard, as
imagens de uma câmara de videovigilância mostram o momento em que foram
disparados cinco tiros contra o jornalista. Foi levado para o hospital,
mas morreu nove dias depois. A rua onde foi atacado, a Lange
Leidsedwarsstraat, tornou-se local de culto e as mensagens de
condolências chegaram de todos os cantos da sociedade neerlandesa,
incluindo do Rei e de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão
Europeia desde 2019.
As
investigações apontaram num sentido, embora não tenham ainda sido
provadas: de Vries foi vítima do gangue de Taghi por ter ajudado Nadil. A
agravante é que, nessa altura, Taghi já estava detido, o que
significava que continuava a operar a sua rede a partir da prisão.
Como se resolve o problema? Mudar a lei parece o único caminho
Nos
Países Baixos assume-se que as duas coisas estão interligadas: as
coffee shops de Amesterdão, onde os turistas (e os moradores) sempre
puderam fumar haxixe sem problemas, foram o rastilho para o problema de
narcotráfico e violência que têm em mãos. Em 1960, os Países Baixos
estavam à frente do resto da Europa com a sua lei que permitia a venda
de drogas leves (pequenas doses). No entanto, o cultivo comercial de
droga é ilegal e os fornecedores são necessariamente as redes criminosas
que operam no país. Além disso, imperava a ‘Gedoogbeleid’, ou seja, a
política de tolerância em relação à cannabis.
Estabelecidas
ali as redes de narcotráfico, que aproveitavam a eficácia da rede de
transportes neerlandesa, trocar drogas leves por cocaína era óbvio e
muito mais lucrativo. Como se resolve o problema? Mudar a lei parece ser
o único caminho. No entanto, os políticos estão parados a olhar para
uma bifurcação.
Femke
Halsema, a presidente da câmara de Amesterdão, defende que a
legalização total da cannabis e da cocaína é a melhor escolha. Ao mesmo
tempo, quer proibir os turistas de consumir drogas em coffee shops,
o que, acredita, irá tornar o mercado mais pequeno e menos apetecível.
Os seus opositores na câmara preferem dar um passo atrás e deixar de
tolerar o consumo de drogas leves.
Femke Halsema, a presidente da câmara de Amsterdão, defende que a legalização total da cannabis e da cocaína é a melhor escolha
Em outubro, num encontro com ministros da Justiça e da Administração Interna de seis países europeus (Portugal não participou), Halsema defendeu a sua opção.
“Vamos encarar os factos: a guerra às drogas não funciona, confiscar
droga não funciona. E a regulamentação da cocaína não está no cenário.
Espero que seja possível concordarmos que precisamos de criar uma
estratégia alternativa.”
A
sua ideia, desde 1996 (quando era criminalista), sempre passou por
legalizar todo o mercado de drogas, no seu país e na Europa. “Ao
criminalizar a oferta e a procura só ajudamos o mercado negro”, defendeu
Halsema, lembrando que foi possível regular o mercado do tabaco com
bons resultados. “No meu coração, estou convencida de que o melhor
resultado para a nossa sociedade pode ser alcançado descriminalizando a
cocaína e regulando o mercado.”
No
entanto, a primeira a opor-se à ideia da autarca de Amesterdão foi a
ministra Dilan Yeşilgöz, que nos Países Baixos é responsável pela pasta
da Justiça. “O problema que temos é tão grande e tão urgente que prefiro
focar-me no que podemos fazer do que em assuntos onde não podemos fazer
tanto.”
Enquanto
os políticos não chegam a um consenso, o problema aumenta. “O que é
certo é que estas redes estão a operar como as redes do México”,
defendeu David Weinberger, citado pela France 24. “Isto quer dizer:
aterrorizar pessoas, enviando este tipo de mensagem forte que as
autoridades públicas consideram um risco. Itália viu isso com o
assassinato de procuradores anti-máfia.”
Ao invés de o problema estar circunscrito, ele aumenta e atravessa cada vez mais fronteiras. Em Espanha, segundo o El Mundo,
já no final de outubro foi desmantelado um gangue com ligações à Mocro
Máfia neerlandesa que pretendia instalar-se na Catalunha para lavar
dinheiro do narcotráfico. “Se não impedirmos, em poucos anos a Mocro
Máfia será tão terrível aqui quanto na Holanda”, escreve o jornal, citando uma fonte ligada à investigação criminal.
Em
Portugal, a Polícia Judiciária não respondeu às perguntas do Observador
sobre a eventual presença de redes ligadas à Mocro Máfia. No entanto,
os relatórios mostram que há cada vez mais rotas de migrantes
marroquinos a passar por Portugal, como se pode ler no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) e nos relatórios da Europol.
Jovens,
solteiros, capazes de recorrer à violência. É isso que os angariadores
de narcotraficantes procuram. E é esse o perfil dos jovens que
desembarcam na costa da Península Ibérica.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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