BLOG ORLANDO TAMBOSI
Quando o conflito emerge, devemos cerrar fileiras a favor do estado de direito. Fernando Schüler para a revista Veja:
A
peça era “inteligente”, escreveu o censor Mário Russomano, sobre Roda
Viva, de Chico Buarque. Havia um estranho elogio ali: o texto era
“absurdo”, na sua visão, mas “provocava o espectador a tomar uma
posição”. O detalhe é que o censor foi lá, assistiu à peça e escreveu
seu relato tosco. Hoje em dia evoluímos: censuramos por dedução, sem
fazer ideia do conteúdo. E o censor não é o “Mário”, mas um tribunal
eleitoral. A produtora de um filme é de “direita”? O título não remete
ao atentado sofrido por Bolsonaro?
Coisa boa não deve ser. A ministra Cármen Lúcia, que um dia entrou na
história com a frase “O cala a boca já morreu”, fez história novamente:
“Não se pode admitir a volta da censura sob qualquer argumento”, disse
ela, para logo a seguir votar pela censura e dar o argumento: a situação
é “excepcionalíssima”. Talvez a culpa seja dos produtores do filme.
Poderiam ter posto um título enigmático. Usar alguma metáfora. Uma
alusão à paixão de Cristo, como fizeram o Chico e o Gil, quando lançaram
Cálice. Faltou traquejo. Na próxima é preciso ficar esperto.
O
voto da ministra Cármen Lúcia é um exemplo perfeito da situação
institucional a que chegamos. Ela é favorável à liberdade de expressão,
mas não agora. A favor em tese, mas não no mundo real, onde o conflito
de ideias de fato existe, onde não há acordo sobre a verdade e a
mentira. Bolsonaro é fascista e genocida? Lula
é “descondenado” e ex-presidiário? Onde inicia e termina a veracidade
desse palavrório todo? “Bolsonaro vai terminar com o salário mínimo?”,
“Lula apoia ditaduras?”. Verdade, meia verdade, meia mentira?
Basta
pensar nisso para verificar o ridículo da pretensão de limpar o debate
público da inverdade. Limpar não só os fatos, mas a lógica, a conclusão,
a forma de dar a manchete, a opinião que organiza a informação. Foi
precisamente isso que o ministro Lewandowski sugeriu fazer. E fez.
Proibiu a associação de Lula com a corrupção sob um argumento que um dia
também fará história: o “cidadão ordinário”, diz ele, “não está
preparado para receber esse tipo de desordem informacional”. O
brasileiro pode dirigir, criar os filhos, construir edifícios, dar
aulas, operar um apêndice ou dirigir aviões. Pode até votar e dirigir o
país. Só não pode entender um argumento. Para isso precisa da
inteligência de um tribunal, pinçando mentiras no mar caótico da
internet, e assim protegendo nossa “verdadeira liberdade”.
Foi
essa a mesmíssima linha seguida na decisão do ministro Fachin,
chancelando a resolução em que o TSE autoriza a si mesmo a banir
diretamente, sem ser acionado, qualquer informação que considerar
“inverídica”, “fora de contexto” ou prejudicial ao processo eleitoral. O
ministro inicia, como se tornou hábito, com duas ou três páginas
protocolares de elogios à liberdade de expressão. Depois, o tempo fecha.
O gancho é o “abuso do poder econômico”. Algo que se materializaria no
“regime de informação”. Isto é: na profusão de opiniões, dados e imagens
que terminaria por aprisionar os indivíduos em uma “caverna platônica”.
Interessante, e algo rudimentar, a referência a Platão. Significa o
seguinte: nós, os vulgos, os tontos, estamos ali na caverna, batendo
cabeça em meio às sombras. Logo, precisamos dos tribunais, em Brasília,
para nos guiar até a luz. Ou ainda: encontrar a “realidade”. O texto
termina como um libelo contra a liberdade de expressão, com direito à
defesa do que o ministro chama de “experimentação regulatória”. Isto é:
diante de um fenômeno excepcional, dado pela confusão informacional,
precisamos de medidas excepcionais. Aquelas leis de sempre, aprovadas
pelo Congresso, à base da Constituição, subitamente envelheceram.
Precisamos agora também de uma “solução platônica”. Quem sabe uma
aristocracia capaz de regular o fluxo da informação e garantir a…
democracia.
Chama
atenção o sutil esquecimento de que a democracia moderna foi construída
precisamente contra o argumento platônico. Foi erguida, passo a passo, a
partir da crença na capacidade do “homem ordinário”. Em sua capacidade
de compreender e julgar e, talvez antes de tudo, de aprender com o
conflito de ideias. Aprender com a diversidade de vozes, a cacofonia que
o ministro quer “ordenar”. Outro ponto interessante é o apelo ao estado
de exceção. Ele aparece no voto da ministra Cármen e na decisão do
ministro Fachin. A lógica é simples: vivemos em um estado de exceção e
precisamos de medidas de exceção. Nos dois casos, por decisão de nossos
ministros. Era este, curiosamente, o argumento que encantava Carl
Schmitt: “O soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”.
Detalhe: Schmitt era tudo, menos um democrata. Foi um entusiasta do
nacional-socialismo e, mesmo depois da guerra, nunca acreditou na força
das democracias liberais. E é aí que temos um problema. Primeiro,
porque não estamos em nenhum estado de exceção. Vivemos apenas mais uma
eleição polarizada.
É
precisamente quando o conflito emerge com força que devemos cerrar
fileiras em torno dos princípios do estado de direito. Em segundo lugar,
porque a “desordem informacional”, para usar a expressão de Fachin, só
vai piorar, pois o volume e a velocidade da informação digital
crescerão. Se hoje temos meio milhão de influencers digitais no Brasil,
teremos 1 milhão nas próximas eleições. E não haverá edifícios em
Brasília para abrigar a legião de censores capaz de pôr ordem nesse
barulho todo. No fim, teremos de voltar ao velho princípio que esteve na
base da vida moderna, talvez desde que Lutero provocou o primeiro
grande caos de nossa época, pondo a Bíblia à disposição do “homem
ordinário”, e pedindo que ele julgasse com a própria cabeça. E com isso
causando a maior “desordem informacional” de que se tem notícia, da
qual, pasmem, nasceu a modernidade.
Por
estes dias, li o belíssimo livro de Jacob Mchangama, Free Speech. Ele
nos fala da “maldição de Milton”, referindo-se a John Milton, o poeta
inglês que pediu, há quase quatro séculos, o fim da censura aos livros.
Milton também tinha lá os seus “poréns”. Era contra a liberdade para os
papistas, por exemplo. Mchangama vê aí a maldição da liberdade de
expressão. Achamos a ideia bacana, mas não para as fake news, para a
“agressão”, ou ainda qualquer coisa que algum ministro achar que é
“inverídico”, “ameaçador” para a democracia. E por aí vamos. No final,
enredados em mar de vírgulas e exceções, jogamos a criança com a água do
banho da liberdade de expressão, sem a menor cerimônia.
O
professor Mchangama faz um alerta: “O problema é que aqueles que
definem o que é desinformação também têm os seus vieses”. E quando o
Judiciário entra nisso pode-se acabar “comprometendo a confiança nessa
instituição essencial para o estado de direito”. Oxalá alguém escute o
seu alerta, antes que enveredemos por um caminho em que a volta se torne
bem mais complicada.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813
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