Eu entendo o argumento de não querer dar o seu apoio formal a nenhum candidato que se detesta. Tenho que votar entre Mao e Pol Pot — o que faço? A crônica de Alexandre Soares Silva para a Crusoé:
Ok, vá lá. Já que é o único assunto agora, vamos falar das eleições.
(Com
esse início acho que consegui o seguinte: 1) parecer pairar mentalmente
acima das eleições, apesar de ser eu mesmo que estou tocando no assunto
das eleições, e 2) Dar a entender que me imploraram para falar das
eleições. Vitória retórica completa.)
Hoje
me deu vontade de defender os, na falta de outros termos, isentões,
anulões e branqueadores de voto. Cá entre nós preferia que houvesse
outro termo além de isentões, que me parece um pouco gasto por ser usado
geralmente por pessoas de QI um tanto baixo. Mas não me ocorre nenhum
outro, então vamos em frente.
Fico me perguntando às vezes o motivo da animosidade contra eles.
Há
o fato de que eles estão declarando, durante uma guerra entre duas
tribos, que não pertencem a nenhuma das duas e querem que as duas se
explodam.
No
caso de uma guerra real, com riscos reais, isso seria admirável. Mas no
caso da guerra metafórica das eleições, há a percepcção dos dois lados
de que essa tribo não está correndo risco nenhum, ao mesmo tempo em que
se diz “atacada pelos dois lados”.
Mas
eles correm algum risco mesmo? Bom, sim, todos nós corremos algum
risco. O bolsonarista corre algum risco se trabalhar, por exemplo, numa
editora, produtora de cinema, qualquer coisa ligada à cultura ou até
muito às margens da cultura, como a publicidade; o petista corre algum
risco se trabalhar numa empresa normal, com gente normal; o isentão se
trabalhar no meio de um grupo de não-isentões um pouco mais tribais.
Mas
de fato há algo um tanto irritante na insistência por parte dos
isentões de que a posição deles é heroica. Essa insistência seria
irritante mesmo no caso de posições heroicas de fato. Um bombeiro que
tivesse salvado um orfanato inteiro de um incêndio ficaria irritante se
todo dia postasse que é um herói. Se amem um pouco menos, meus amigos
nem-à-esquerda-nem-à-direita. Às vezes até eu tenho vontade de lhes dar
um catiripapo.
Também
há a percepção, dos dois lados, de que o isentão na verdade está
escondendo uma aliança com o outro lado. Isso deve ser verdade em alguns
casos. Talvez muitos. Mas alguém pode achar que isso é verdade em todos
os casos? Não — o isentão real, o isentão abstrato, o isentão no vácuo,
tem algo de admirável.
E
eu entendo o argumento de não querer dar o seu apoio formal a nenhum
candidato que se detesta. Tenho que votar entre Mao e Pol Pot — o que
faço? Me isolo durante dois anos para decidir quem é o menos pior? E se a
pessoa não enxergar diferença nenhuma, por mais que tentem convencê-la
de uma diferença aqui e acolá?
Se
a pessoa de fato vê a escolha que tem que fazer como sendo entre algo
horrível e algo igualmente horrível, é óbvio que ela não precisa
escolher. É legítimo. Ela está certa em não querer votar, ou em querer
anular, ou o que seja.
Não ouça os chatos. Anule mesmo. Anule com força.
O
problema — bom vou dizer qual é o problema de fato. O problema é que
essa pessoa muitas vezes assume que, se você acha um candidato menos
pior, você adora esse candidato. Você é um completo imbecil que não vê
os defeitos desse candidato. Não. Olha, vou fazer uma imagem um tanto
nojenta, mas é a realidade.
Estamos todos trancados numa cadeia, para sempre. Ok? O carcereiro chega e diz:
—Hora
do almoço. Vocês podem escolher entre dois pratos: sopa de água de
banho com couve-flor ou tartine de muco e azeitonas. Mas o prato que
vocês escolherem vai ser a única coisa que a gente vai servir durante
quatro anos. Escolham bem. Não pode mudar depois.
Meu companheiro de cela se vira pra mim e diz:
—Não consigo escolher! São igualmente horríveis! Meu Deus! Escolhe você!
Anda de um lado pro outro pela cela, aflito.
Bom, tento imaginar o que é menos horrível.
— Água do banho de quem? – pergunto.
— Dos carcereiros.
Penso um pouco.
— Muco de quem?
— Da professora de Filosofia Política e Estética da USP Marilena Chauí.
É difícil.
— A couve-flor da sopa pelo menos é normal? — pergunto.
O carcereiro checa no menu e diz:
— A couve-flor é marinada durante sete dias entre os dedos dos pés do cantor, compositor e percussionista brasileiro Otto.
Talvez seja uma escolha impossível. Mas se eu não escolher, alguém vai.
Cheio
de dúvida, escolho a sopa de água de banho com couve-flor marinada nos
dedos do Otto. Sei lá, parece um pouco menos pior, não? O guarda ri e
vai embora.
E
nos servem sopa de água de banho com couve-flor, no almoço e no jantar.
E durante todos os próximos quatro anos, em todos os almoços e
jantares, todos os dias, meu companheiro de cela olha pra mim e diz:
—Qual
o problema? Está com ânsia, Alexandre? Mas você não adoraaaava sopa de
água de banho? Você tinha que escolher sopa de água de banho? Não é
evidente que sopa de água de banho não é legal? E agora, fala pra mim,
está adorando a sopa de água de banho? Quer o meu prato também? Nãão,
come tudo, não deixa sobrar nada não. Não foi você que escolheu?
É só isso que é irritante em vocês, meus amigos que anulam voto. Consertem isso, e volto a ser fã de vocês.
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