Demétrio Magnoli
Folha
De modo geral, não declaro meu voto, pois creio que, para o grande público, ele é tão irrelevante quanto minhas preferências cinematográficas, literárias, esportivas ou culinárias. Mas, especificamente, recuso-me a declarar voto neste espaço para não violar aquilo que deveria ser um princípio inegociável da imprensa profissional: o jornal precisa evitar a prática da persuasão utilitária.
A Folha tinha uma norma, hoje abolida, que vetava declarações de voto em colunas de opinião. Era uma derivação da regra intocável que separa, rigidamente, o espaço jornalístico do espaço publicitário.
MARCA DE SABONETE – Um candidato é um produto no mercado da política – num certo sentido, como uma marca de sabonete é um produto no mercado da higiene pessoal. Não divulgo meu voto e não solicito que leitores votem em alguém pelo mesmo motivo que não faço publicidade de outras mercadorias. Sei que sabonete é coisa diferente – mas isso só torna tudo pior, porque “um bom jornal é uma nação conversando consigo mesma” (Arthur Miller).
Ninguém cessa a conversa por divergências sobre sabonetes, mas escolhas de candidato poluem o diálogo. Um jornal cravejado por declarações de voto será lido (ou descartado) como material de propaganda partidária.
O Fundo Eleitoral e o horário “gratuito”, financiados com dinheiro público, asseguram aos candidatos recursos que superam em muito o orçamento de qualquer veículo de imprensa. Eis o lugar mais eficaz para declarações de voto: as campanhas oficiais. Alegremente, elas publicariam os textos persuasivos dos articulistas de opinião, difundindo-os para uma audiência inalcançável pelos jornais.
EXEMPLO AMERICANO – Nos EUA, jornais costumam declarar voto, em seus editoriais. Nenhum problema. A declaração pontual torna mais transparente a relação do veículo com seus leitores.
Adicionalmente, obriga os jornais que não querem perdê-los a preservar a busca da objetividade nos espaços noticioso e analítico, bem como a natureza apartidária das colunas de opinião.
O colunismo de opinião transita, por definição, em rotas contaminadas por alguma subjetividade. É indispensável, porém, mantê-la dentro de limites estreitos. A opinião em estado puro (“eu acho”) só é de interesse público quando o sujeito que “acha” controla poderes suficientes para imprimir sua preferência pessoal na vida dos demais —como ocorre com presidentes, parlamentares ou juízes.
CERRADA ARGUMENTAÇÃO – Colunistas, por outro lado, precisariam sustentar suas opiniões em cerrada argumentação conceitual e evidências factuais. Declarações de voto, que são meras adesões ao arsenal discursivo das próprias campanhas, não cumprem o requisito.
Há dois tipos de persuasão. A persuasão utilitária, típica da publicidade, tem a finalidade de provocar uma decisão de consumo. Campanhas eleitorais pertencem ao discurso publicitário porque pretendem convencer o eleitor a comprar uma mercadoria simbólica: o candidato X ou Y.
Já a persuasão não utilitária almeja convencer o público sobre o valor de certas ideias. É essa a vocação das colunas de opinião.
A crítica implacável de atos ou ideologias de autoridades, líderes partidários e partidos faz parte da missão do colunismo político. Vale até elogiá-los –parcimoniosamente, pois eles têm fartos meios para disseminar autoelogios. Nada disso se confunde com declarações de voto.
HÁ DETURPAÇÕES – As redes sociais deturparam as percepções sobre o debate público. Nelas, opiniões geram recompensas psicológicas, na forma de “likes”. O mecanismo estimula a fragmentação dos participantes em bolhas dedicadas à reconfirmação de seus pontos de vista.
O colunismo que declara voto tende a reproduzir o panorama das redes, selecionando leitores ansiosos pela reiteração de suas próprias opiniões.
Leitores atentos e vacinados contra fanatismos adivinharão meu voto, se quiserem perder tempo com isso. Mas não o declaro, em respeito a eles.
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