Uma
das maiores provas do avanço da China foi a “aposentadoria” de Deng
Xiaoping, o pequeno grande gênio das reformas que tiraram o país da
miséria e o transformaram numa potência que aspira à hegemonia
planetária. Havia uma corrente política furiosamente contra a abertura
para a economia de mercado, mas o tongzhi Xiaoping, o simples título de
“camarada” pelo qual queria ser tratado, conseguiu se aposentar e morrer
de morte natural em 1997. Ocupar o poder e deixá-lo sem expurgos ou
fuzilamentos é um dos sinais de evolução política em países com sistemas
totalitários. Na antiga União Soviética, Nikita Khrushchev foi o
primeiro líder a perder o poder, mas não a vida, aposentado numa dacha
por mais dez anos, até 1971. O próprio Khrushchev, com a falsa imagem de
camponês bonachão, havia tramado o que foi talvez o mais perigoso
expurgo interno da história recente: o de Lavrentiy Beria, o monstro que
comandava os serviços secretos, tendo chegado a acreditar que seria o
sucessor de Stalin.
Correndo
o enorme risco de conspirar contra o homem que tinha todo o aparato
repressivo na mão, Khrushchev e Georgy Malenkov convocaram uma reunião
da cúpula do Partido Comunista. “O que está acontecendo, Nikita?”,
perguntou Beria, estarrecido, quando Khrushchev desfechou uma fileira de
acusações. Antes que fosse aprovada uma moção demovendo-o do cargo,
Malenkov entrou em pânico e apertou o botão. Parece paródia de filme de
espionagem, mas foi exatamente assim que o marechal Georgy Zhukov, o
herói da II Guerra, e um grupo de generais entraram no salão e levaram
Beria preso. Foi executado com um tiro na cabeça pelo general Pavel
Batitsky.
“Apertar
o botão” acabou virando sinônimo de expurgo, comum em regimes brutais
como o do Iraque de Saddam Hussein, onde ele fez uma reunião do Partido
Baas para se livrar de 68 dirigentes (os que escaparam da morte
receberam armas para executar os colegas menos afortunados), e o da
Coreia do Norte, com o tio de Jong-un sendo arrastado por militares de
uma reunião do politburo. O tio caído em desgraça seguiu seu destino
natural e foi fuzilado. Para a China, é uma humilhação ter vivido seu
dia de Coreia do Norte com a grotesca retirada do ex-presidente Hu
Jintao do lugar de honra que ocupava à esquerda de Xi Jinping. Covid,
senilidade, expurgo? Vamos precisar de paciência até que a verdade
aflore — se o fizer, algum dia. A consagração de Xi Jinping, que não
quer saber de aposentadoria, acabou jogada no ridículo. Choveu na parada
dele, como dizem os americanos, os inventores do modelo-padrão para
ex-presidentes. Contrato milionário para escrever memórias (e fazer
série na Netflix, no caso do casal Obama), palestras com cachê altíssimo
para garantir uma vida segura e um chapéu discretamente passado para
erguer uma biblioteca presidencial. Donald Trump, que está sendo um
ex-presidente pior do que foi presidente, quando tinha a apresentar
dados econômicos muito sólidos, bagunçou o modelo, com problemas na
Justiça que ainda estão se desdobrando. No Peru, os cinco últimos
presidentes foram denunciados, condenados ou fugiram. Um se suicidou. O
atual, Pedro Castillo, vai pelo mesmo caminho. Pode ser uma democracia
funcional? Claro que não. Ex-presidentes presos são um atestado de
falência institucional porque demonstram que a Justiça funciona ao
combater poderosos, mas o sistema é podre.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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