A faculdade de Hillsdale é reverenciada pelos conservadores norte-americanos simplesmente por manter a missão histórica de ensinar os alunos a perseguirem o que é “bom, verdadeiro e belo”. Gabriel de Arruda Campos para a revista Oeste:
Em
maio de 2020, quando a pandemia de covid-19 ainda parecia uma ameaça
tão assustadora quanto desconhecida, a governadora do Estado de
Michigan, a democrata Gretchen Whitmer, determinou que todos os eventos
com mais de cem pessoas fossem cancelados — mesmo que ao ar livre, mesmo
que com o uso de máscaras. Hillsdale College, uma faculdade localizada
numa pequena cidade de 10 mil habitantes no sul do Estado, decidiu
desafiar a ordem da governadora. Em vez de cancelar sua cerimônia de
formatura, manteve o evento, com banda de instrumentos de sopro, entrega
de diploma, oradores e a presença das famílias na plateia. “Nem durante
a Guerra Civil nossa faculdade cancelou a formatura”, justificou Larry
Arnn, presidente (equivalente ao reitor) de Hillsdale. “Não poderíamos
deixar de realizar a cerimônia, tomando todos os cuidados necessários.”
Não
foi a primeira vez que Hillsdale desafiou poderes superiores. A
faculdade, que tem cerca de 1,5 mil alunos e foi criada em 1844, ganhou o
noticiário nacional nos anos 1980, quando, depois de uma queda de braço
com o governo federal (envolvendo a obrigatoriedade de manter uma base
de dados com a raça de cada estudante), a faculdade resolveu abrir mão
de qualquer subsídio estatal, mesmo que indireto. Em um país onde 92%
dos universitários usam empréstimos federais para pagar pelo curso
superior, era uma aposta arriscada. Mas o saldo final foi positivo:
Hillsdale começou a atrair doadores, que, sem nunca ter sido alunos da
faculdade, resolveram contribuir com a instituição de ensino. Hoje,
enquanto grandes universidades norte-americanas se afogam em dívidas,
Hillsdale opera no azul e tem caixa suficiente para garantir muitos anos
de funcionamento (além de oferecer assistência financeira a 98% de seus
alunos). O orçamento de 2022 é de aproximadamente US$ 900 milhões (R$
4,7 bilhões). A Unicamp, que tem 35 mil alunos, possui uma dotação
orçamentária de R$ 3,7 bilhões para este ano.
Capela de Hillsdale: tamanho de catedral e estilo clássico
Em
Hillsdale, o histórico de desconfiança do governo vem de longe. Fundada
por batistas abolicionistas, a instituição foi a faculdade de Michigan
que mais teve alunos mortos em combate durante a Guerra Civil. Sessenta
deles perderam a vida, todos lutando contra o sul e a favor do fim da
escravidão. Hillsdale foi também a segunda faculdade do país a oferecer
às mulheres a oportunidade de obter um curso superior completo, de
quatro anos. Hoje, mais pela marcha à esquerda da educação
norte-americana do que por uma guinada à direita da pequena faculdade de
Michigan, Hillsdale é reverenciada pelos conservadores
norte-americanos. Em certa medida, simplesmente porque manteve sua
missão histórica de ensinar os alunos a perseguirem o que é “bom,
verdadeiro e belo.”
Currículo clássico
Tradicionalmente,
as universidades europeias e norte-americanas tinham um amplo currículo
comum a todos os estudantes, que só depois de cumprir esses requisitos
podiam escolher uma área na qual se aprofundar. A partir do século 19,
esse sistema foi sendo gradualmente abandonado, em favor de um modelo
compartimentado, em que estudantes de cursos diferentes não convivem em
sala de aula — um aluno de física só precisa aprender aquilo que é
estritamente necessário para ser um físico competente. Mas, em
Hillsdale, as coisas ainda acontecem à moda antiga. Todo aluno precisa
cumprir um currículo obrigatório, que geralmente toma os dois primeiros
anos da graduação e inclui cursos de filosofia, teologia, história,
retórica, matemática, artes e ciências naturais, além de uma matéria
sobre a Constituição dos Estados Unidos. O princípio por trás desse
sistema é simples: os estudantes universitários precisam ter acesso
abrangente ao universo do conhecimento, e só então se tornar
especialistas em uma área específica. A ideia não é simplesmente formar
bons trabalhadores (e muito menos militantes políticos), mas seres
humanos completos e virtuosos.
Aula ao ar livre
Outro
diferencial de Hillsdale é sua capacidade de manter princípios cristãos
tradicionais e, ao mesmo tempo, receber alunos de igrejas diferentes.
Apesar da origem batista, a faculdade hoje é cristã não denominacional
(prática da fé cristã sem seguir nenhuma denominação cristã específica).
O corpo estudantil é dividido quase que meio a meio entre católicos e
protestantes. “Como um protestante praticante e estudante de religião em
Hillsdale, pude ter um diálogo construtivo com meus amigos católicos”,
disse Ethan Greb, que se formou em 2019 e agora cursa um mestrado em
teologia em outra instituição de ensino.
A
religião ocupa um espaço importante no campus — literalmente. Dois anos
atrás, Hillsdale inaugurou sua capela, que na verdade mais parece uma
catedral. O prédio, em estilo clássico, impressiona pela grandeza. Uma
das dificuldades foi achar uma empresa de construção capaz de levar um
projeto assim adiante, já que foi a primeira construção do tipo em sete
décadas nos Estados Unidos. Quem visita o local tem a chance de entrar
em um templo que, por um lado, parece ser um prédio centenário, por
outro, ainda carrega o cheiro e o brilho de uma obra recém-inaugurada. A
capela, aliás, foi parcialmente financiada por uma doação de US$ 12,5
milhões (R$ 65 milhões, em valores de hoje), vinda de um único casal.
Em primeiro plano, está o prédio principal do campus. A catedral está atrás, depois do gramado
Ethan
Greb ganhou mais do que um diploma em Hillsdale. Foi lá que ele
conheceu Caroline, que viria a ser sua mulher. A jovem pintora, formada
em belas-artes, diz que o modelo de ensino da faculdade é difícil de
encontrar em outro lugar. Ela diz que a ênfase de Hillsdale no padrão
clássico de arte é “muito, muito rara” em outras instituições de ensino.
“Na maioria das vezes, as escolas de arte começam com ‘expresse a si
mesmo’ e ‘experimente’, antes de fornecer as habilidades técnicas de
desenho e pintura. Hillsdale faz o contrário: você desenha, pinta,
esculpe, desenha e pinta novamente até estar equipado com as habilidades
certas para poder expressar algo bem”, diz Caroline, que hoje se divide
entre cuidar da filha bebê e atender os clientes interessados em
adquirir seus quadros.
Conexões políticas
Excelência
acadêmica não é tudo. Hillsdale tem também boas conexões políticas. O
presidente Larry Arrnn, no cargo desde 1999, se dá bem com a elite do
Partido Republicano e chegou a presidir uma comissão
criada pelo presidente Donald Trump para promover o ensino da história
norte-americana. Arnn conversa com alguma frequência com Mike Pence,
vice-presidente na gestão de Trump (e que foi o orador principal da
formatura de Hillsdale em 2018). Pence não foi o primeiro político de
destaque a visitar o campus da universidade: figuras como Ronald Reagan e
Margaret Thatcher também estiveram por lá. Ambos, aliás, hoje são
homenageados com estátuas no Hillsdale College, assim como George
Washington, Winston Churchill e Frederick Douglass, o líder
abolicionista do século 19, que discursou por suas vezes na faculdade.
A
clara predileção pelos valores conservadores pode motivar críticas de
que Hillsdale não prepara seus estudantes para enfrentar um mundo cada
vez mais alinhado com as bandeiras “progressistas”. Os mestrandos e os
doutorandos de política até aprendem sobre Karl Marx, mas não dão muita
atenção a ele: a obra do pensador socialista é parte de um curso que
inclui diversos outros autores do século 19. As grandes estrelas são
autores clássicos, como Platão, Aristóteles e Cícero — além de Thomas
Jefferson e Alexander Hamilton, que participaram da fundação dos Estados
Unidos.
Para
Ethan Greb, a falta de diversidade ideológica pode ser um problema.
“Definitivamente, eu acho que Hillsdale criou uma bolha política e
ideológica ao redor dos seus alunos”, afirmou. “É reconfortante e
edificante ser parte de um grupo que acredita nas mesmas coisas. Mas, ao
mesmo tempo, pode haver uma atrofia da capacidade de confrontar
ideologias opostas.” Ethan relata outra preocupação típica de um
estudante de Hillsdale: “De uma perspectiva cristã, existe menos
oportunidade de compartilhar a mensagem do Evangelho”, diz. É que
praticamente todos os alunos já são cristãos, embora a faculdade não
faça qualquer exigência nesse sentido.
Ethan e Caroline Greb
Maria
Servold, diretora assistente do curso de jornalismo, diz que a
considerável homogeneidade ideológica dos estudantes não é um problema.
“Não acho difícil ensinar os alunos a relatarem os fatos e escreverem de
forma justa”, contou. “Embora muitos estudantes de Hillsdale sejam
conservadores, eles também tendem a ter uma grande apreciação pela
liberdade de expressão. Eu os ensino a reportarem e escreverem notícias
de forma direta, tanto quanto a escreverem artigos de opinião.”
Ex-aluna
de Hillsdale, Maria diz que avaliava estudar na Universidade do
Missouri, cujo curso de jornalismo tem ótima reputação. Até que mudou de
ideia: “Visitei Hilllsdale, assisti a uma aula de jornalismo, li o The
Collegian (o jornal produzido pelos estudantes) e minha decisão estava
tomada”.
A
reportagem de Oeste perguntou à equipe de comunicação de Hillsdale se a
faculdade se define como “conservadora”. A resposta foi esta:
“Hillsdale está comprometida com a educação de excelência, dentro da
tradição clássica das artes liberais”, afirmaram. “Além disso, nosso
currículo básico e os princípios expressos nos documentos fundadores da
faculdade contêm um apreço sério e bem fundamentado pelos ideais
expressos na Declaração de Independência, na Constituição e em outros
grandes textos das tradições ocidental e cristã.”
Procura em alta
Com
seu sucesso financeiro e acadêmico (e a radicalização de instituições
que antes eram vistas como respeitáveis), Hillsdale tem atraído cada vez
mais candidatos a alunos. A média do GPA (índice que mede o desempenho
dos alunos no ensino médio) dos admitidos só cresce e é praticamente
igual ao da prestigiosa Universidade de Michigan, considerada uma das
maiores do país.
A
faculdade também tem investido pesado em cursos gratuitos oferecidos
pela internet, e que incluem temas como o livro do Gênesis, a Segunda
Guerra Mundial e a obra Hamlet, de William Shakespeare. Apesar de não
gerar credenciais acadêmicas, esses cursos atraem um público cada vez
maior. Muitos alunos, geralmente adultos acima dos 40 anos, acabam
virando doadores da faculdade. Graças à boa saúde financeira, Hillsdale
abriu, em 2019, um programa de mestrado profissional em política em
Washington, a poucos metros do Congresso norte-americano. A faculdade
lidera ainda um bem-sucedido programa de implementação de escolas com
perfil clássico ao redor do país.
O cenário no Brasil
Se
Hillsdale é uma exceção ao predomínio dos “progressistas” nas
universidades norte-americanas, o cenário no Brasil parece ser ainda
mais desfavorável aos conservadores. Embora existam instituições
menores, geralmente religiosas, de perfil conservador, elas normalmente
não se destacam pela qualidade acadêmica. Boa parte do mercado privado é
dominada por faculdades que priorizam o fluxo de caixa à promoção das
virtudes. E não só não há universidades particulares com as
características da instituição de Michigan, como as universidades
públicas parecem estar aprisionadas em um modelo ideal para a esquerda:
recursos públicos garantidos, estabilidade no cargo para os professores e
autonomia universitária, que é usada para justificar os mais diversos
abusos ideológicos.
“É
preciso abandonar a mentalidade de que as universidades devem
transformar a sociedade”, diz Pablo Lollo, professor da Universidade
Federal da Grande Dourados e presidente do grupo Docentes pela
Liberdade, criado para reunir professores universitários liberais e
conservadores. Para ele, a solução para o ensino superior passa por uma
reaproximação entre a academia e os cidadãos. Isso, por sua vez, exige
uma “maior participação dos mandatários”, na avaliação dele. O professor
acredita que os governantes precisam assegurar que as universidades
públicas atuem para o bem da sociedade que as financia em vez de
gastarem seus recursos tentando fabricar ativistas.
Para
Lollo, apesar dos muitos entraves burocráticos, o Brasil comportaria
iniciativas com o perfil de Hillsdale. “Acredito que haveria espaço para
uma universidade privada nesses moldes”, diz.
Mas é possível que um projeto do tipo envolva algum grau de desobediência civil.
Em
2020, quando o Estado de Michigan determinou que todas as universidades
suspendessem as aulas presenciais, o campus Hillsdale fechou as portas.
Mas, subitamente, os professores começaram a organizar eventos em suas
próprias casas, anunciados a suas turmas como “Encontro social — que de
forma alguma é uma aula — para discutir a obra de Aristóteles”. Eram
aulas. Mas não no espaço físico da universidade. De certa forma, em
tempos nos quais a insanidade é premiada, a verdadeira educação é um ato
de resistência.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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