Se aprovada, a PEC das embaixadas pode desmotivar os diplomatas de carreira e permitir que parlamentares partidarizem unidades no exterior, prejudicando a política externa brasileira. Artigo de Rodolfo de Camargo para a Crusoé:
Com
uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 34/2021), o senador Davi
Alcolumbre, do União Brasil, recomenda que deputados e senadores possam
assumir a chefia de embaixadas e consulados, sem ter de renunciar aos
seus mandatos como congressistas. Analisada pela Comissão de
Constituição de Justiça, a CCJ, no início de julho, a PEC teve a votação
foi adiada para agosto, depois que senadores pediram mais tempo para
estudar a questão. Trata-se de uma proposta perigosa, pois causa
diferentes prejuízos à carreira diplomática e diminui a capacidade de o
Brasil defender seus interesses no exterior.
A
primeira consequência seria o enfraquecimento do controle do Poder
Executivo sobre os postos no exterior. No modelo atual, é a Presidência
da República que comanda a política externa, juntamente com o Ministério
das Relações Exteriores, o Itamaraty. A proposta da PEC 34/2021 cria a
figura dos “legisladores-embaixadores” que teriam um pé no Legislativo e
outro no Executivo. Em nível doméstico, a manutenção dos mandatos na
Câmara ou no Senado, por quatro ou oito anos, deixaria em aberto o canal
de conexão com os seus partidos, eleitores,além da tribuna parlamentar.
Enquanto isso, no exterior, eles comandariam uma unidade diplomática do
Ministério das Relações Exteriores, pertencente ao poder Executivo. Em
seus postos no exterior, eles saberiam que, se descumprirem ordens ou
forem demitidos pelo presidente da República, poderiam retomar
rapidamente sua imunidade, poderes e afazeres legislativos. Esse poder
duplo concederia aos “legisladores-embaixadores” alta margem de manobra,
o que poderia gerar conflitos hierárquicos e contrariar os interesses
nacionais, representados e coordenados pelo Executivo.
Um
segundo fator de risco seria o uso dos consulados e embaixadas para
fins particulares ou partidários. Basta imaginar uma situação com
múltiplos “legisladores-embaixadores” servindo em distintos postos
diplomáticos, longe de Brasília, agendando reuniões com políticos e
empresários de mesma coloração partidária no exterior. Ao orientar-se
por suas motivações e ambições políticas, surgiriam vários incentivos
para que eles adotassem comportamentos desviantes, instrumentalizando os
postos diplomáticos para fins específicos. Unidades do serviço exterior
brasileiro poderiam ser escolhidas a dedo e tornar-se moedas de troca
de campanhas eleitorais, negociações setoriais ou barganhas paroquiais.
Eles atuariam para lobbies dos mais variados ou com objetivos de
marketing e palanque internacional. Também poderiam escolher os postos
com o objetivo de se afastar do Brasil por opção própria, como uma
espécie de autoexílio, ou por iniciativa dos demais membros do partido
que desejam guardar algum congressista em uma “geladeira” no exterior,
enquanto esperam a poeira abaixar na política doméstica.
Há
distintas possibilidades, então, de ocorrerem quebras nos ritos do
trabalho diplomático que se desenvolve em rotinas próprias e se
consolida em um largo período. O timing da política externa, em que se
vão costurando paulatinamente os interesses nacionais com parceiros
estratégicos, além de instrumentalizado, poderia ser acelerado, ou
inclusive dinamitado. Muito da diplomacia ainda é analógico e
cerimonial, bastante distinto das curtas e intensas janelas temporais
eleitorais. Na hipótese de um desses “legisladores-embaixadores” ter
pressa para capitalizar politicamente uma negociação ou um acordo
diplomático, isso poderia afetar seriamente os interesses brasileiros.
Outra
questão estaria relacionada a uma maior “politização” dos diplomatas.
Dado que os congressistas possuirão atalhos de entrada e saída entre o
Itamaraty e as Câmaras legislativas, é plausível considerar que
diplomatas se aproximem de lideranças partidárias ou de deputados e
senadores cotados para chefiar unidades diplomáticas. Nesse cenário,
aumentariam os incentivos para os diplomatas fazerem lobby político para
serem convocados a determinados postos no exterior pelos parlamentares.
De um lado, diplomatas investiriam parte de seu foco e tempo em
atividades alheias à diplomacia, tendo que negociar, militar, ou
divulgar seu currículo para os atores do Legislativo. De outro lado, os
“legisladores-embaixadores” poderiam assumir um crescente papel de
intermediários no recrutamento de diplomatas para embaixadas e
consulados, diminuindo o poder de ação do Itamaraty em alocar seus
membros em suas unidades no exterior.
Um
último fator de risco seria a desmotivação profissional no Itamaraty.
Aqueles diplomatas sem apetite para se envolver na política partidária
provavelmente ficariam desanimados ao ver seus colegas do Itamaraty com
mais traquejo no Congresso sendo beneficiados ou recompensados com
determinados postos e cargos.
O
Ministério de Relações Exteriores é um dos mais longevos serviços
públicos federais, cuja carreira profissional consolidada no Poder
Executivo filtra seus membros por meio do Concurso de Admissão a
Carreira Diplomática, o CACD, um exame de larga data e altamente
competitivo. Uma vez aprovado no CACD, as promoções dos burocratas do
Itamaraty são condicionadas a uma série de pré-requisitos: cursos e
teses no Instituto Rio Branco, cargos-chave no Itamaraty e tempo em
postos diplomáticos no exterior. Esses indicadores passam por crivos e
avaliações entre pares e a elite do Itamaraty delibera quais membros
serão promovidos na hierarquia diplomática. De acordo com dados do
Itamaraty de 2010, organizados por mim, desde o ingresso na carreira (os
chamados “terceiros secretários”) até o topo da elite diplomática
(formalmente “primeiros-ministros” ou mais conhecidos como
“embaixadores”), demorava-se em média três décadas. Uma importante
motivação diplomática e burocrática, senão a principal, é chegar ao topo
da hierarquia da carreira e poder chefiar postos no exterior. Formação e
experiência são cruciais e a subida é longa até um diplomata estar apto
para tanto. Catapultar deputados e senadores ao topo dos postos
diplomáticos, que leva trinta anos de trajetória profissional no
Itamaraty, poderia ser considerado como um grave problema à progressão
na carreira que os diplomatas escolheram. Além disso, a politização
insere um combustível inflamável que pode resultar em uma
desestabilização hierárquica . Nesse sentido, o desenvolvimento, a
disposição e a dedicação profissional dos diplomatas seriam gravemente
comprometidos.
Para
que o Brasil possa continuar com um corpo de diplomatas profissional,
motivado, e com coordenação do Poder Executivo, sob o guarda-chuva da
Presidência da República e com um Ministério de Relações Exteriores que
defende os interesses brasileiros, sugiro aos parlamentares que votem
contra a PEC 34/2021.
Rodolfo
de Camargo Lima é cientista político e professor da Universidade
Católica de Temuco, no Chile. Mestre e doutor pela Universidade de São
Paulo, escreveu sua dissertação e tese sobre o Ministério das Relações
Exteriores
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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