A desigualdade, a partir de um certo ponto, é destrutiva para a sociedade e para a democracia. A pergunta óbvia a fazer é: que ponto exatamente seria esse? Fernando Schüler para a Veja:
“Precisamos
de mais desigualdade, não menos”, disse o empresário Winston Ling, dias
atrás. A frase deu o que falar e soa muito estranha em um país marcado
pela miséria e pelo capitalismo de compadrio. O que imagino que ele
tenha tentado dizer é que, em uma economia aberta de mercado, com forte
proteção a direitos, a chance de ganhar mais funciona como um prêmio
para o trabalho e a inovação. E mais: que o mercado não é um jogo de
soma zero, mas um jogo cooperativo. Steve Jobs ficou bilionário porque
inventou um computador pessoal, naquela garagem em Palo Alto, e foi
capaz de melhorar a vida de milhões de pessoas. Elon Musk só aparece na
capa da Forbes porque uma montanha de gente acha que melhora de vida
comprando um Tesla ou ações de suas empresas. William Nordhaus,
analisando avanços tecnológicos na segunda metade do século XX, estimou
que o empresário inovador captura pouco mais de 2% do valor que gera na
sociedade. Podemos resmungar por aí achando que tem uma bruxa má, tipo
Robin Hood às avessas, distribuindo o dinheiro das pessoas a um punhado
de bilionários inúteis. Mas não é assim, ao menos em um mercado aberto,
que as coisas funcionam.
Há
uma penca de coisas a esclarecer nesse tema. A primeira delas é a
tradicional confusão entre desigualdade e pobreza. Uma das críticas que
Ling recebeu veio de um deputado socialista. “Tem brasileiro na fila do
osso”, disse ele, “e vem empresário bolsonarista dizer que precisamos de
mais desigualdade.” O deputado acertou e errou ao mesmo tempo. Ele
atira na desigualdade, mas acerta na pobreza. O que dá um sentido ético a
sua crítica é o fato de que as pessoas estão “na fila do osso”. Se a
frase fosse “o brasileiro sem poder ir pra Disney e o empresário…”,
soaria não mais do que uma piada. É a tese clássica de Harry Frankfurt, o
filósofo de Princeton: o que nos move eticamente não é a diferença
entre a classe média e os mais ricos, e muito menos entre os ricos e
muito ricos. É a pobreza. O ponto é que falar de pobreza é meio chato, e
pouca gente parece de fato preocupada com o problema. Bacana é xingar
os “super-ricos”, os banqueiros e “faria limers”, em que pese sempre
desconfio que esse discurso também seja meio que de mentirinha.
No
período que vai do final da Guerra Fria aos dias atuais, assistiu-se a
um trade-off. A desigualdade cresceu, mas 1,1 bilhão de pessoas saíram
da miséria, globalmente, segundo o Banco Mundial. Na América Latina, a
extrema pobreza foi reduzida à metade, e a desigualdade, medida pelo
índice de Gini, caiu de 0,54 para 0,47, entre o início dos anos 90 e a
segunda metade da década passada. De modo geral, assistimos ao que o
economista Richard Baldwin chamou de “grande convergência”, isto é, o
processo em que, pela primeira vez na história moderna, a riqueza
agregada dos países em desenvolvimento ultrapassou a dos países
avançados. Tudo em razão da transferência maciça de investimentos,
negócios e empregos dos países centrais para países periféricos. Isso
penalizou indústrias obsoletas e destruiu empregos na classe média
trabalhadora de países avançados. Muita gente chiou com o fechamento de
fábricas da Nike e de grandes montadoras nos Estados Unidos. Donald
Trump fez seu proselitismo falando sobre isso. O interessante é observar
o que fizeram os países que pegaram o bonde da redução drástica da
pobreza nesse período. Sua receita foi simples: abertura econômica,
regras de mercado, investimento em tecnologia e educação. A abertura
chinesa é um exemplo disso. Em pouco mais de três décadas, o país
conseguiu reduzir a pobreza extrema em 90%. E é inteiramente inútil
perguntar se as pessoas escolheriam viver na China “igualitária” da era
Mao ou na China atual, com seus 600 bilionários na lista da Forbes.
Um
equívoco comum no debate sobre a desigualdade é concentrar seu foco no
aspecto renda. Com isso se perde um fato notável de nossa época, que é a
contínua aproximação dos padrões de vida. O economista Nicholas
Eberstadt mostra como a expectativa de vida média, no plano global, mais
do que dobrou ao longo do século XX, e a desigualdade nesse âmbito caiu
cerca de dois terços. O mesmo aconteceu com a educação. No imediato
pós-guerra até os dias atuais, a população adulta sem escolaridade caiu
de 50% para 15%. De novo, temos o trade-off. A disparidade de renda
aumenta, em algumas regiões, mas o acesso a bens básicos, como a
educação, se universaliza. O mesmo se dá com bens de consumo básicos.
Nos anos 30, no Brasil, custava sessenta salários mínimos para comprar
uma geladeira. Hoje você compra uma boa geladeira por dois salários, e o
IBGE nos mostra que 95% das casas no país já têm a sua.
Outro
tema fascinante nesse debate é o que gosto de chamar de “teoria do
ponto X”. A ideia é a de que a desigualdade, a partir de um certo ponto,
é destrutiva para a sociedade e para a democracia. Piketty foi um
divulgador dessa tese. “A desigualdade”, diz ele, “a partir de um certo
ponto” é injusta e compromete valores democráticos. A pergunta óbvia a
fazer é: que ponto exatamente seria esse? Qual o padrão “correto” de
“concentração” da riqueza no top 1%? Quem teria a prerrogativa de
decidir essas coisas? O Congresso? Seria uma “escolha da sociedade”,
como escuto vez ou outra, de gente bacana fazendo de conta que não são
os políticos, em Brasília, que decidem essas coisas.
É
perfeitamente plausível que se decida, inclusive no plano
constitucional, que as pessoas em situação de vulnerabilidade terão
direito a um mínimo social. É o que fazem, no Brasil, o BPC, que garante
um salário mínimo a pessoas vulneráveis com mais de 65 anos, e o Auxílio Brasil.
Coisa inteiramente diferente é acreditar na sabedoria do mundo político
para regular a distribuição da renda na grande sociedade. É aí que
aparece a bruxa má. Mesmo dispondo da maior carga tributária da América
Latina, foi de 0,26% do PIB a taxa de investimento direto do governo
federal no ano passado. Um estudo do Banco Mundial mostrou que 75% do
gasto social, no Brasil, é “pró-ricos”, em regra capturado pela
burocracia pública. De fato, temos um Robin Hood às avessas circulando
por aí, e seria interessante prestar um pouco mais de atenção em como
ele funciona.
Em
1800, pouco mais de 80% da humanidade vivia na miséria. Isso caiu a 44%
no fim dos anos 80, mostra David Rosnick, e nas três décadas seguintes
tudo se acelerou, com uma redução para perto de 10% da população global.
A história desse sucesso está aí, a nossa disposição, para aprender:
abertura econômica, regras de mercado, direitos iguais, proteção à
propriedade, aposta na tecnologia e na educação. Um pacote que Daron
Acemoglu e James Robinson chamaram de “instituições inclusivas’. Tudo
distante das teorias do “ponto X”, e tudo ao contrário do que a infinita
conversa-fiada ideológica pregou, e continua pregando, durante todos
esses anos. Já devíamos estar vacinados, mas infelizmente não estamos, e
é aí que reside, no fim das contas, nosso maior desafio.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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