Filme iraniano surge como um dos melhores do ano com uma narrativa simples e poderosa. João Pereira Coutinho para a FSP:
Amigos
próximos sabem que a sorte é uma das minhas grandes obsessões. Não
apenas no sentido prosaico de ter sorte na vida, no jogo, na amizade, no
amor. No sentido moral da expressão. Será que a forma como avaliamos o
caráter de alguém tem em conta a sorte que a pessoa teve ou não teve?
"Ele
é honesto", "ele é falso", "ele é talentoso", "ele é fraco": até que
ponto as nossas avaliações não são determinadas pela sorte do agente?
Essas
preocupações, mais ou menos desarticuladas, encontraram a sua expressão
filosófica no clássico ensaio de Bernard Williams, "Moral Luck", sorte
moral, que li anos atrás.
Imaginemos Gauguin, escrevia o autor. Sim, aquele burocrata que abandonou tudo –carreira, mulher, filhos– para ir pintar no Taiti.
Se
Gauguin tivesse falhado, ele seria visto como um egoísta e
irresponsável que abandonou os seus deveres como cidadão e pai de
família.
Mas
Gauguin não falhou; tornou-se um dos grandes pintores da arte moderna.
Hoje, olhamos para a sua decisão como um ato de coragem e autenticidade
–uma forma de seguir a sua vocação contra todas as resistências.
Para além do talento, Gauguin teve sorte. E essa sorte enobrece-o aos nossos olhos (ou, pelo menos, aos olhos da maioria).
Será que Kant estava
fundamentalmente errado quando afirmava que a essência da moralidade
era imune à ideia de sorte? E que só a intenção do agente importa?
Acontece
que a sorte não serve apenas para enobrecer a ação; a sorte também pode
ser má sorte, destruindo as melhores intenções que qualquer decisão
possa ter.
Um bom exemplo disso é o extraordinário filme de Asghar Farhadi, "Um Herói", já nas salas.
(Curioso: quando olho para os melhores filmes deste 2022, tenho um japonês, "Drive My Car", um francês, "Ilusões Perdidas", e um iraniano, "Um Herói". O cinema americano desapareceu do radar.)
Mas
o filme de Farhadi é talvez o melhor dos três por revisitar o conceito
de "sorte moral" com uma narrativa simples e poderosa.
Rahim
Soltani (o excelente Amir Jadidi) está na prisão por dívidas. O seu
sócio fugiu com o dinheiro e o credor não perdoou Soltani.
Mas
a sorte sorriu ao pobre homem: a sua mulher encontrou uma bolsa com
moedas de ouro e Rahim terá parte do dinheiro para começar a pagar a
dívida. Assim que o credor o permita.
O
credor não está interessado em receber parte do valor, no entanto;
exige o valor inteiro. Rahim pondera: valerá a pena insistir? Ou a
atitude mais justa é devolver as moedas ao seu legítimo proprietário e
esperar por dias melhores?
Não
sabemos as razões profundas que levam Rahim a devolver as moedas. Sede
de protagonismo? Um despertar de consciência? Arrependimento? O que
sabemos é que ele toma a "decisão correta".
Ao
fazê-lo, o seu gesto transforma-o em herói. E todos querem participar
nesse heroísmo –os diretores da prisão, as associações beneficentes da
cidade, a mídia, a família, os vizinhos.
É
o primeiro momento de sorte moral: ao devolver as moedas, Rahim
conseguiu a reabilitação social e até financeira que perdera com a sua
condenação. O futuro sorri para ele.
O
problema é que a sorte moral não funciona apenas em sentido ascendente.
Ela é especialmente perversa quando subverte as melhores intenções –e o
brilhantismo do filme está na forma trágica, banal e trágica, como vai
tecendo a queda de um homem.
A
modernidade política sempre lidou mal com a ideia de sorte. Se tudo
está nas nossas mãos, como prometiam os "philosophes" iluministas do
século 18, como admitir que a contingência ainda tem uma palavra no
destino das nossas vidas e das nossas sociedades?
Eu
próprio, todos os anos, testo os meus alunos com uma pergunta de
algibeira: o que é a felicidade? Há respostas para todos os gostos. É
ter saúde. Dinheiro. Amor. Fama. Amigos.
Nunca
nenhum me respondeu com a sorte –o conceito que está na raíz da própria
palavra felicidade ("felix"). A sorte sempre foi a pedra no sapato da
cultura racionalista, para quem a razão basta na construção de todas as
utopias.
Um
erro e uma ilusão. Controlamos menos do que pensamos. E, como na
história de Rahim, talvez a única forma de sobrevivermos aos humores do
destino é mantendo no lugar a nossa consciência.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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