Era num predinho perto do Largo do Cambuci, uma quitinete não das melhores. Pensei: para alguém que dizem estar tão ameaçada, faz sentido esse muquifo. Pois entrei, subi, bati à porta, ela abriu. Orlando Tosetto Júnior para a revista Crusoé:
Tive
um encontro com a Democracia. Ah, eu sei o que o amigo está pensando:
que fui a uma dessas festas, comícios ou shows de anciões que tocam
violão só de cueca e saiote de palha, com vinho vagabundo, refrigerante
quente, salgadinho gelado e gente dançando com os braços para cima. Uma
dessas festas em que o chão logo fica grudento, em que as mulheres
pintam a cara como argentinas e o perfume no ar é um misto de cebola e
cecê. Porque é isso – não é? – que se chama de encontro com a
Democracia. Isso ou algum programa de TV cheio de gente trans.
Não,
não foi isso. Foi um encontro com ela mesma. A Democracia. Em carne e
osso. Ou em vapores abstratos, que sei eu. Um amigo veio me disse: olhe,
vá a tal endereço, em tal dia, a horas tais, que ela vai estar lá te
esperando.
Expressei
ao amigo um certo incômodo. Veja bem, eu disse, eu não sou do tipo que
frequenta garçonnières, e nem do tipo que faz com a Democracia o que se
faz em garçonnières. Por quem me tomas? Aliás, por quem ela me toma?
O
amigo me tranquilizou. Não era nada daquilo. A Democracia só queria
conversar comigo. É uma coisa que ela faz com uns e outros. Chama, põe
um disco do Ray Conniff baixinho na vitrola, te dá uma dose de uísque
democrático (odiei-te, essas coisas) e troca umas ideia. E outra: quem
era eu na fila do pão para pensar em besteiras com a Democracia? Alguém
do Executivo? Alguém do Legislativo? Alguém do (pausa para o pelo-sinal)
Judiciário? Eu que baixasse a minha bolinha e fosse com calma.
Baixei
minha bolinha e fui. Era num predinho perto do Largo do Cambuci, uma
quitinete não das melhores. Pensei: para alguém que dizem estar tão
ameaçada, faz sentido esse muquifo. Pois entrei, subi, bati à porta, ela
abriu. E, amigo, te digo o seguinte: a Democracia se parece com uma
inspetora de alunos – se é que o amigo tem idade para saber o que é uma
inspetora de alunos. Lá estava ela, um pouco acima do peso, um pouco
acima dos cinquenta, de coque, óculos de lentes grossas em cima de olhos
de dono de quitanda, sem maquiagem, com uma blusa de lã, uma saia
grossa que lhe descia bem abaixo dos joelhos, meias que se pareciam com
coadores de café e sapatos de homem. O único perigo que ela parecia
correr era o de morrer solteira. Confesso, com alguma vergonha, que me
perguntei se ela teria muitas varizes.
Mandou
eu me sentar num banquinho (nem cadeira era). Não me serviu nada, nem
sequer o tal uísque democrático, e já foi logo perguntando, como uma
professora que pergunta quanto dá sete vezes oito:
— Você gosta de mim?
Levei
os mesmos quatro segundos que levo para calcular sete vezes oito para
dizer que sim, que gostava dela. Não soou sincero, mas não era
necessariamente mentira: o gosto é uma coisa nuançada, é ou não é? Tem
graus, tem paletas, que sei eu? Tem seus degradês. Direi ao amigo que,
não sendo ela mulher de muitas cores, eu gostei dela em algum tom de
sépia, já que os tons de cinza sugerem outra coisa. Aí ela foi em
frente:
— Você me ama?
Amigo,
que sinuca. Você numa garçonnière com uma senhora que se parece com uma
das suas tias, e ela perguntando de amor. Bom, pensei em desespero,
depende do tipo de amor. Amor filial. Amor avuncular. Amor ao elevado
ideal. Ah, eu não tinha nenhum desses. E outra: então é esse tipo de
ideia que a Democracia quer trocar? Ela não quer saber o que eu acho do
rap, das pessoas gordinhas e de cabelos coloridos, dos funks cheios de
palavrões, da ressocialização de traficantes, dos pronomes neutros?
(Engraçado que quando a gente pensa em Democracia, pensa automaticamente
nessas coisas. Engraçado.) Em todo caso, amor, ah, amor era impossível.
Fiquei quieto. Ela, claro, se ofendeu. Ordenou:
— Cai fora.
E eu caí fora.
Agora,
que o amigo não me entenda mal: o fato de eu não ser capaz de amar
aquela senhorinha de olhos duros e tornozelos enfaixados não quer dizer
que eu não possa conviver com ela, ou que não reconheça o seu valor, a
sua utilidade, até, se calhar, seus bons sentimentos; eu sou capaz sim,
viu, sou muito capaz mesmo. Nem preciso ser muito pressionado para fazer
a ela alguns elogios: que é séria, que é objetiva, que tem cara de ser
boa harpista, que deve ter boa caligrafia, faz um belo ponto cruz e não
erra nas contas.
O diabo, amigo, é que, poxa, com a Democracia a gente não se apaixona: no máximo, se conforma. Essa, aliás, é a receita do casamento feliz dos nossos avôs
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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