No fim do primeiro quartel do século XXI, com os portentosos avanços da medicina de que dispomos, morremos sobretudo sem saber porquê. Se somarmos a isto a perseguição à propriedade privada e a entrada dos insetos nos cardápios, não tarda que a evolução da espécie nos devolva ao orangotango. Via Observador, a crônica semanal de Alberto Gonçalves:
Cá
e lá fora, tem-se falado muito do excesso de mortalidade. Bem, para
dizer a verdade, não se tem falado tanto quanto isso. E o relativo
silêncio é curioso. Durante dois anos, fechou-se metade da humanidade
para evitar, sem particular sucesso, mortes desnecessárias. Agora que as
mortes desnecessárias continuam a acontecer, as “autoridades” e os
“media”, tão caridosos e aflitos em 2020 e 2021, não lhes ligam nenhuma.
Uma
possível explicação prende-se com o facto de não se conseguir imputar à
Covid todo o “superavit” vigente de falecidos. Longe vão os saudosos
tempos em que cada finado, incluindo os que se finaram sob os eixos de
um autocarro, partia “de”, “com” ou “por” Covid. Reduzir a realidade ao
bicho que veio da China conferia a esta o estatuto de maior cataclismo
desde o Dilúvio, facilitava o enchimento de “telejornais” e emprestava
aos políticos a possibilidade de fingirem resolver uns problemas
enquanto criavam problemas maiores. O povo, entretido com o medo e a
Netflix, agradecia tudo.
Por
azar, a presente vaga de óbitos a mais – que atinge a maioria do
Ocidente e cuja vanguarda Portugal naturalmente integra – não se esgota
na Covid. A presença da Covid, decerto medida com o rigor habitual,
justifica apenas uma parte dos óbitos. Uma segunda parte, desconfio, são
os infelizes que não foram consultados, diagnosticados, medicados ou
operados a pretexto de a Covid não ceder espaço a leviandades como
cancros e maçadas cardiovasculares. Se ninguém lhes ligou na altura
devida, é compreensível que se mantenham desprezados na altura da morte.
Sucede
que uma terceira, e pelos vistos significativa, parcela do actual
excesso de defuntos não morre nem de Covid nem de enfermidades
“tradicionais”. Morre de quê, então? Ui, isso é complicado. Para início
de conversa, é preferível descrever como esses coitados morrem: de
repente. E de repente também, a “morte súbita” parece ter saído das
anomalias estatísticas para se tornar um critério relevante na
contabilidade das funerárias. Quais são os sintomas desta doença
inesperada (em vários sentidos)? O grande Mark Steyn enumera ambos: num
momento, estamos bem; no momento seguinte, estamos mortos.
É
claro que a ciência estará a tentar descobrir os motivos do fenómeno.
Desgraçadamente, os pantomineiros que saltitam pelas televisões e pelos
jornais chegaram antes. Incansáveis, os “especialistas” do costume
avançam com múltiplas causas para a pandemia de “morte súbita”, uma ou
duas causas por “especialista”.
A
consulta ao Google, o nacional e o estrangeiro, é inspiradora. Há os
“especialistas” que vão pelo seguro e se ficam por trivialidades. É
possível, dizem, que essas mortes se devam ao calor, tese que funciona
sobretudo quando está quente, mas que depressa se adapta ao frio e, com
jeito, ao clima ameno. A lacuna da tese é o calor, o frio e as
temperaturas intermédias serem coisas velhas, e a quantidade de “mortes
súbitas” coisa nova. É aí que os “especialistas” jogam o trunfo: o
aquecimento global. Ou as alterações climáticas. Ou a emergência
climática. Ou o suicídio colectivo climático, para usar o neologismo
fresquinho do eng. Guterres. Recapitulando, as pessoas morrem
repentinamente de calor, de frio e, quiçá, da angústia de sentirem o
planeta em risco. Estamos entendidos?
Não
estamos. Inúmeros “especialistas” empenham-se em fugir ao óbvio e
pesquisam em lugares improváveis a razão para que milhares de sujeitos
bem dispostos desatem, num ápice, a esticar o pernil. As hipóteses que
se seguem são retiradas da imprensa britânica, a qual, ancorada no
conhecimento dos sábios, atribui as “mortes súbitas” a: 1) Aumento da
factura da luz; 2) “Stress” pandémico; 3) Fanatismo futebolístico; 4)
Cigarros electrónicos; 5) Bebidas alcoólicas, mesmo que ocasionais; 6)
Falhar o pequeno-almoço; 7) Obsessão com previsões meteorológicas; 8)
Dietas não saudáveis; 9) Dietas saudáveis; 10) Microorganismos sortidos;
11) Sedentarismo; 12) Prática de desporto; 13) Medo da guerra na
Ucrânia. Por mim, acrescento ainda a herança colonial, o racismo
sistémico, a supremacia branca, o heteropatriarcado, o capitalismo
selvagem, o capitalismo domesticado, os transportes privados, a
discriminação de transgénero e as ameixas maduras. E as ameixas verdes,
evidentemente.
Face
a tamanha profusão de explicações, é compreensível que alguns países ou
regiões prefiram evitar a especificidade na hora de apontar culpas. A
província de Alberta, no Canadá, começou a imputar as “mortes súbitas” a
“causas desconhecidas”. Hoje, é oficial: as “causas desconhecidas” são,
destacadas, a principal causa de morte em Alberta e, provavelmente,
noutros sítios que tivessem a decência de assumir a ignorância. Curioso.
No fim do primeiro quartel do século XXI, com os portentosos avanços da
medicina de que dispomos, morremos sobretudo sem saber porquê. Se
somarmos a isto a perseguição à propriedade privada e a entrada dos
insectos nas ementas, não tarda que a evolução da espécie nos devolva ao
orangotango.
Porém,
não vou divagar. Nem especular sobre as novidades e as mudanças que, no
mundo dos últimos 15 ou 18 meses, seriam susceptíveis de influenciar a
mortalidade. Não me apetece polémicas. À cautela, admito que o provável é
os mortos em excesso morrerem por defeito, o defeito da vaidade. Vai-se
a ver e aquilo é gente que quer ser diferente e anda mortinha por dar
nas vistas. Gente assim faz o que calha para aparecer. Incluindo
desaparecer.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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