Em Budapeste, nas margens do Danúbio, não pude deixar de pensar no destino destas nações da Europa do Meio, sempre no caminho de impérios conquistadores – e agora até de Bruxelas. Artigo de Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
A
Europa Central, a MittelEuropa ou OstEuropa, começou por me
interessar e impressionar pelos escritores. Geograficamente, era tudo o
que ficava para Leste da Alemanha e antes da Rússia; política e
culturalmente, era o antigo Império dos Habsburgo. Mas antes disso e com
isso, era, para mim, os escritores: primeiro, Stefan Zweig, de quem li,
muito cedo, as biografias de Fernão de Magalhães, de Maria Stuart, de
Maria Antonieta, de Fouché; e depois os Momentos Decisivos da História
da Humanidade, onde havia uma extraordinária narrativa da última batalha
e primeira derrota de Napoleão, “O Minuto Mundial de Waterloo”.
Confesso que era então – apesar das invasões – pelo Napoleão, e sofria
quando o Blücher chegava antes do Grouchy e “naquela triste planície,
terminava a epopeia”.
Os escritores da Terra do Meio
Li
mais tarde os romances Amok e Vinte e Quatro Horas da Vida de uma
Mulher, e O Mundo de Ontem, uma memória desse império dos Habsburgo, que
acabou com a morte do arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo. Vi o
filme agora, em Budapeste, no Museu de História Militar, uma peça de
nostalgia necrológica, com a devida pompa e circunstância.
Joseph
Roth, outro dos judeus contemporâneos de Zweig, também tinha publicado
um requiem pelo Império, em 1932: A Marcha de Radetzky. Radetzky foi o
general dos Habsburgo ligado às últimas vitórias da guerra de Itália,
mas também à repressão brutal na Lombardia-Venetia. O romance conta as
derradeiras décadas do Império Austro-Húngaro através da saga da família
Trotta, uma história de ascensão e queda paralela à do Império. O
primeiro Trotta salvara o imperador Francisco José em Solferino e fora
nobilitado; a partir daí os von Trotta seguiam a sorte do Império. A
“Marcha de Radetzky”, Opus 228 de Johann Strauss, é uma marcha triunfal
encomendada ao compositor para celebrar o velho marechal depois da
batalha de Custoza.
Stefan
Zweig fugiu da Áustria em 1934 e divorciou-se da primeira mulher,
Friederike, de quem ficou amigo. Em 1936 esteve com Joseph Roth, em
Ostende, na Bélgica. De Londres, com outros emigrados que descreve como
“fantasmas”, acabou por partir para Nova Iorque. Viajou depois com a
nova mulher, Lotte, para o Brasil e suicidou-se com ela em Petrópolis,
em 1942. Nascido na Grécia em 1894, Joseph Roth serviu no Exército
imperial e escreveu em jornais como o Frankfurter Zeitung. Em 1933, o
ano do triunfo de Hitler, o judeu Roth foi para Paris, onde acabou os
seus dias. Lamentava a destruição da “sua pátria”, a única que tinha
tido, a “Monarquia Dual da Áustria-Hungria”. Morreu nas vésperas da
Segunda Guerra.
A
Marcha de Radetzky lembra outros romances contemporâneos do declínio e
queda do império habsbúrgico, como O Homem sem Qualidades, de Musil ou O
Bom Soldado Svejk, de Jaroslav Hasek. A tragédia, o destino e o humor
corrosivo destes autores marcam o fim desse Império
aristocrático-burguês, multiétnico, liberal, conservador, tão diferente
do que viria a seguir.
Todos
estes autores, enredados num saudosismo sonâmbulo do decadente Império
Dual dos Habsburgo e do seu autoritarismo tolerante, cairiam fulminados
pelo hitleriano despertar dos Nibelungos.
Kafka,
outro sonhador de histórias fantásticas, nasceu em Praga, no reino da
Boémia, também judeu e também cidadão da MittelEuropa e da monarquia dos
Habsburgo. Não teve de emigrar porque morreu em 1924, antes das
perseguições hitlerianas. Mas em 1951, na República Democrática Alemã, o
autor de O Processo teria as suas obras proibidas, como burguês
“decadente”, contrário à ortodoxia do Partido de Estaline.
Outro
cidadão do Império dos Habsburgo, senhor de um grande sentido de humor e
mestre de distopias, foi Karel Capek, o inventor da palavra “robot”.
Descobri-o com A Guerra das Salamandrase A Fábrica do Absoluto,
publicados na Argonauta e na Miniatura, colecções de bolso da minha
adolescência. Capek também morreu cedo, de bronquite – ou de desgosto
perante a ocupação da Boémia-Morávia pelos alemães. E depois de 1948 foi
também proibido pelos comunistas – era um liberal admirador da América
que publicara, em 1924, o ensaio Porque é que não sou comunista: “Se o
meu coração está do lado dos pobres por que raio é que eu não sou
comunista? Porque estou do lado dos pobres”, escrevia então Capek.
Outro
autor da MittelEuropa, também cidadão tardio do Império dos Habsburgo e
perseguido pelos sucessivos totalitarismos foi Sándor Márai, escritor
húngaro tardiamente conhecido, mas considerado hoje um dos grandes
autores da literatura europeia. Márai nasceu em 1900 na Hungria, em
Kassa. De família aristocrática, foi, na juventude, partidário da
República Socialista Soviético-Húngara, uma experiência comunista que
durou uns poucos meses, entre Maio e Agosto de 1919, mas que serviu de
susto e de lição. Márai criou então um “Grupo Activista e Antinacional
de Escritores Comunistas” e fugiu do país quando os comunistas caíram,
errando pela Europa até voltar à Hungria do regente Miklós Horthy, em
1928.
Em
1942 escreveria o seu romance mais célebre, As Velas Ardem até ao Fim,
uma história de nostalgia, paixão, amizade e ajuste de contas. No fim da
Guerra, com a entrada das tropas soviéticas em Budapeste, Márai também
saiu do país e colaborou activamente, entre 1951 e 1968, na Radio Free
Europe. Fixara-se, entretanto, nos Estados Unidos e a sua desilusão com
falta de apoio ocidental ao levantamento nacional e popular de Budapeste
em 1956 seria total. Acabou também por se suicidar em San Diego, em
1989.
Em
Budapeste, nas margens do Danúbio, penso nos destinos destes escritores
da MittelEuropa, todos nascidos nos finais da Monarquia Dual dos
Habsburgo, todos nostálgicos dessa Europa de ontem e da sua liberdade
burguesa, liquidada em massivas vagas totalitárias. Penso neles nesta
cidade capital da Hungria, uma nação muito especial, com uma língua
única, incompreensível, diferente de todas. Uma nação muito antiga, com
os seus reis lendários de seis dinastias, de Santo Estêvão a Mathias
Corvinus; uma nação que foi sofrendo as invasões e ocupações de muitos
impérios – dos turcos, dos russos, dos austríacos, dos nazis, dos
soviéticos – e que foi sempre resistindo. Os heróis dessa resistência
ocupam hoje dezenas de pedestais nos parques e jardins da capital, ao
lado dos escritores, dos músicos, dos poetas.
Conversando
aqui com velhos e novos amigos e comparando histórias e destinos, não
pude deixar de pensar na geografia benévola que Deus deu a Portugal, na
ponta ocidental da Europa, tendo por único vizinho – e possível invasor e
inimigo – a Espanha; e de compará-la com a destas nações da Europa do
Meio, sempre no caminho de impérios conquistadores – e agora até de
Bruxelas, com os “novos direitos humanos” e o saco das patacas para
chantagear os recalcitrantes.
Hungria, uma história de resistência
A
Hungria não esquece a sua história de resistência. No século XIX, em
1848-1849, na Primavera das Nações, revoltou-se contra os Habsburgo, uma
revolta que o novo Imperador, Francisco José, só dominou graças ao
grande corpo expedicionário russo de Nicolau I. Em 1867, depois de anos
de repressão, houve uma reconciliação austro-húngara e o conde Andrássy,
um patriota revolucionário de 1848, que tinha sido enforcado em efígie,
ficou primeiro-ministro, selando um compromisso que durou até à Grande
Guerra.
A
brutalidade da História continuou a abater-se sobre a Hungria no século
XX: com a derrota de 1918 e a revolução comunista de Bela Kun, os
vencedores esquartejaram o país, pelo Tratado de Trianon, e tiraram-lhe
dois terços do território e parte da população.
Depois
foi a tragédia da Segunda Guerra, em que a Hungria alinhou com a
Alemanha e a Itália; em 1944, o golpe dos Cruzes de Flecha, de Ferenc
Szálasi, ditou o fim dos judeus húngaros. Alguns salvaram-se, graças à
protecção do Almirante Horthy e aos passaportes concedidos pelos
diplomatas de Portugal e Espanha.
Os
soviéticos saíram vencedores dos 50 dias da batalha de Budapeste, entre
26 de Dezembro de 1944 e 13 de Fevereiro de 1945, uma batalha em que
morreram quase 40.000 civis, com os alemães a sofrerem e a infligirem
pesadas baixas aos russos.
Depois
da vitória, as tropas comunistas procederam às brutalidades do costume:
além da ritual violação das mulheres, milhares de raparigas foram
raptadas e levadas para os quartéis pelos soldados; mais de 600 mil
húngaros, militares e civis, dos quais um forte contingente da minoria
alemã, foram aprisionados e enviados para a União Soviética para
trabalhos forçados. Calcula-se que, destes, cerca de 200 mil tenham
morrido de maus tratos. Parte dos civis foram deportados para preencher o
número de prisioneiros militares que o marechal Malinovsky, por
excesso, indicara no seu relatório da batalha de Budapeste.
Depois
veio a longa noite comunista: no princípio houve eleições e os
comunistas perderam para o Partido dos Pequenos Proprietários, que teve a
maioria absoluta, em Novembro de 1945; mas, aproveitando a presença das
tropas soviéticas e dominando o aparelho policial e militar, os
comunistas intimidaram e dividiram os opositores, prendendo e enviando
os mais decididos para a União Soviética e levando outros ao exílio.
Seguiu-se a perseguição aos cristãos – católicos, calvinistas e
luteranos –, com o julgamento e condenação do Cardeal Mindszenty e a
colectivização, tudo sob a tutela de Estaline e dos líderes locais
comunistas – Mátyás Rákosi e o seu grupo de emigrados na URSS.
O
terror comunista caiu sobre a Hungria e os húngaros, habituados a lutar
contra ocupações e tiranias. E em 1956, nos últimos dias de Outubro,
depois do discurso de Kruschev a denunciar os crimes de Estaline (como
quem denuncia uma novidade de que ele, Kruschev, e a Nomenklatura
estavam inocentes e a qual desconheciam), houve o primeiro grande
levantamento popular contra um regime comunista.
Ardilosamente,
os comunistas aderiram à pressão popular e Imre Nagy, um comunista que
fora primeiro-ministro em 1953-55 mas que mostrara independência em
relação a Moscovo, foi chamado ao poder pelos rebeldes, enquanto as
tropas russas simulavam uma retirada. Entretanto, os soviéticos
pós-estalinistas, que sabiam bem que era o medo que garantia o poder do
Partido, com a cumplicidade de Janoskadar, foram enganando os húngaros
com negociações – e voltaram em força em 4 de Novembro, esmagando os
revoltosos com tanques.
Desta
vez, mais de dois mil revoltosos foram mortos nos combates, muitos
milhares foram presos e torturados e desses foram mortos umas centenas.
Duzentos mil fugiram. Nagy refugiou-se na embaixada da Jugoslávia, mas
saiu, confiado na palavra de Kadar para ser entregue e julgado à porta
fechada. Foi enforcado em 1958. O cardeal Mindszenty, libertado pelos
rebeldes, refugiou-se na embaixada americana, e aí viveu até 1971. Tinha
já sido preso pelos Cruzes de Flecha durante a guerra.
Hoje,
a Europa, a liberal Europa unida que quer impor os “novos direitos
humanos” de uma agenda radical e anti-cristã a um país que pagou com a
tortura e a morte a resistência a dois radicalismos iliberais
anti-cristãos, parece obcecada com o iliberalismo de costumes da
Hungria. Consequentemente, o primeiro-ministro Viktor Órban, que iniciou
a sua vida política como militante anticomunista, é apresentado como um
tirano em ascensão, e assim firmemente considerado por uma coligação
bem-pensante, que vai dos correligionários ideológicos dos comunistas
que mataram e torturam milhões em todo o mundo, até aos “convidados
ociosos da existência”, que assistem do sofá ao que lhes dizem “que vai
pelo mundo”.
Em
Budapeste visitei a “Casa do Terror”, uma moradia onde, sucessivamente,
funcionou a direcção do partido nazi dos Cruzes de Flecha e a polícia
política do Partido do Estado comunista, a AVO, com os gabinetes dos
chefes das secretas e dos torturadores e as caves com as celas por onde
passaram Nagy e Mindszenty. Também lá estão os retratos de quase todos
os menores aprisionados, como o célebre Péter Mansfeld, de quinze anos
––; menores esses que os carrascos do “poder popular”, no estrito e
escrupuloso cumprimento da lei, ali mantiveram encarcerados até
atingirem a idade legal para poderem ser executados.
São histórias que a Hungria não esquece.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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