Não se pense que a tradicional separação de poderes dos regimes democráticos será imune à eficácia das tecnologias de transação digital (tecnologia blockchain coadjuvada por inteligência artificial). Dario de Oliveira Rodrigues para o Observador:
Enquanto
Putin invade a Ucrânia para alterar fronteiras terrestres, somos
inconscientemente subjugados pela expansão da fronteira de
possibilidades estabelecida pelas próprias tecnologias. Percebemos estar
reféns de sofisticadas armas nucleares, mas temos a ilusão, por
exemplo, de que a desinformação só afeta os russos. Contudo, as
tecnologias da guerra não descansam nem em tempo de paz, servindo
incessantemente a ganância e o poder.
A
Leste e a Oeste, vira o disco e toca a mesma natureza humana. Por cá,
ainda não ouvimos o rufar dos tambores porque a democracia é o pior dos
regimes à exceção de todos os outros. No entanto, para que a ironia de
Churchill não passe disso mesmo, urge perceber que chegou a idade da
reforma política da sociedade; uma regeneração transparente, de pendor
tecnológico, que permita a emancipação individual e a moralização da
ação coletiva.
Claro
que as tecnologias são destituídas de moral e não podemos esperar que
sejam justas, éticas ou decentes. Elas só podem ser classificadas quanto
à respetiva eficácia, já que a moralidade é um atributo humano. Ora,
como as tecnologias atingiram uma eficácia extraordinária e a virtude
moral está individualmente distribuída de forma irregular, estamos nas
mãos de uma roleta russa amoral que só pode ser travada por uma
tecnologia ainda mais extraordinária. Afinal, a tecnologia vence sempre.
Numa
época em que a energia atómica disponível é altamente eficaz (para o
bem e para o mal), o processamento de dados também se tornou
incrivelmente poderoso. Na verdade, átomos e bits têm hoje um poder de
magnitude comparável, sendo as tecnologias de informação tão decisivas
para a humanidade como a tecnologia nuclear. Por isso, não espanta que
os mísseis balísticos e a desinformação sejam os maiores trunfos de
Putin.
O
marketing é uma tecnologia eficaz. No entanto, o mérito do seu
resultado não depende dessa eficácia. Na pandemia e na guerra, tal
avaliação prende-se, sim, com o efeito terapêutico dos medicamentos
prescritos e o interesse público das políticas implementadas. Por outras
palavras, o valor acrescentado pelo marketing depende sempre do
objetivo da persuasão, sendo a respetiva eficácia eticamente neutra.
Afinal, o marketing enganoso também pode ser eficaz. Por exemplo,
enquanto a eficácia do marketing farmacêutico protege a saúde pública no
caso das vacinas, o sucesso do marketing político enganoso do Kremlin
surte um efeito diametralmente oposto.
Na
verdade, a eficácia tecnológica manifesta-se à revelia de quaisquer
juízos morais. Por isso, não adianta apontar o dedo às tecnologias que
viabilizam “fake news” e mísseis nucleares. O importante mesmo é travar
politicamente a roleta russa amoral a que estamos sujeitos por causa da
eficácia tecnológica.
Insisto
neste ponto da neutralidade moral das tecnologias porque há
preconceitos que só servem para atrapalhar e condenam a humanidade a
infortúnios escusados. Por exemplo, fala-se em energia nuclear ou
bitcoins e logo surgem tais preconceitos. Como se pudéssemos
realisticamente contar com energias menos poluentes e dinheiro mais
confiável.
Infelizmente,
no preciso momento histórico em que precisamos da maior clarividência
política para manter a liberdade e enfrentar a crescente ameaça à
sobrevivência da humanidade, os dirigentes políticos fazem um silêncio
ensurdecedor perante a primeira tecnologia que serve a descentralização
do poder. Mais: tal silêncio só é quebrado pela desinformação que visa
esbater os indícios financeiros da nova realidade e proteger o status
quo. Isso é lamentável, pois o fruto de tão ruinosa ignorância (ou de
outras razões não razoáveis) será provavelmente catastrófico.
Se
os sistemas monetários e a comunicação social continuarem a ser
centralizados, geridos por grupos restritos de indivíduos ou até por
autocratas, assistiremos, impotentes, à utilização discricionária de
tecnologias demasiado poderosas para dispensarem escrutínios éticos
realizados pelas próprias comunidades.
Não
se pense que a tradicional separação de poderes dos regimes
democráticos será imune à eficácia das recentes tecnologias de transação
digital (tecnologia blockchain coadjuvada por inteligência artificial).
Caso não apontemos estas novas tecnologias à descentralização,
nomeadamente, substituindo a irregular distribuição moral individual
pela mais homogénea ética comunitária, todos sucumbiremos ao desígnio da
eficaz roleta russa tecnológica.
As
tecnologias apenas podem ser ultrapassadas por outras tecnologias. Não
há outra forma de seguir em frente. A tecnologia convencional do
dinheiro, baseada no débito, falhou na crise de 2008 e voltará a falhar.
Como a necessidade aguça o engenho, foi criado, nessa altura, um
sistema monetário digital alternativo designado Bitcoin. Hoje percebe-se
que a eficácia dessa inovação tecnológica estende-se para além da área
financeira, abrindo avenidas para a expedita descentralização das
decisões políticas.
O
facto é que passou a ser possível os indivíduos coordenarem as
respetivas transações sem terem de confiar uns nos outros ou sequer se
conhecerem. A tecnologia em questão foi inventada a pensar na
descentralização do dinheiro, mas os cidadãos precisam dela a vários
níveis. Na verdade, a causa pública não pode dar-se ao luxo de dispensar
o novo tipo de confiança baseado em consensos alargados só possíveis de
instituir em redes blockchain de código aberto.
Estamos
a falar da automatização da confiança e da transparência na vida
comunitária, através da desintermediação das transações digitais na
sociedade, por exemplo, mediante a celebração de contratos
autoexecutáveis, o que passou a ser possível graças à emergência de
novas garantias associadas ao rigor matemático e à validação
criptográfica de consensos obtidos em redes blockchain.
As implicações político-económicas da tecnologia blockchain
são tremendas, quer para o bem quer para o mal, pois, como vimos, as
tecnologias são amorais e a evolução tecnológica não se compadece com o
destino das pessoas, pelo que terão de ser elas a tratar de si próprias.
Como o desfecho político desta mudança não é inevitável, estamos num
marco histórico e filosófico. Chegada a idade da reforma política da
sociedade, há que estudar, refletir e não desperdiçar a oportunidade de
transitar para um novo paradigma ético, político e financeiro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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