Numa República, ninguém – seja ministro do STF, pastor ou presidente – tem competência para oferecer rota de impunidade. Editorial do Estadão:
No
mesmo dia em que Jair Bolsonaro indicou um pastor evangélico para o
Supremo Tribunal Federal (STF) – várias vezes, o presidente Bolsonaro
manifestou que a escolha de André Mendonça se deve à prática da religião
protestante –, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar o
chefe do Executivo federal por crime de prevaricação. É no mínimo
contraditório o presidente Bolsonaro proclamar a defesa de valores
cristãos na esfera pública enquanto continua difundindo inverdades,
desrespeitando outros Poderes e, principalmente, esquivando-se de
oferecer explicações convincentes sobre sua conduta.
“Eu
entendo que a prevaricação se aplica a servidor público, não se
aplicaria a mim”, disse o presidente da República, mostrando que se vê
rigorosamente acima da lei. O Código Penal é expresso. Para fins da lei
penal, são considerados funcionários públicos “quem, embora
transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função
pública”.
O
episódio da compra da vacina Covaxin pelo Ministério da Saúde é
vergonhoso e precisa ser devidamente investigado pela Polícia Federal.
Seis meses antes do negócio, a fabricante indiana ofereceu a dose por
US$ 1,34, mas o governo preferiu fechar o negócio valendo-se de uma
empresa intermediária que cobrou US$ 15 a dose. Segundo Jair Bolsonaro, o
então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não viu nada de errado no
contrato.
Na
compra de vacina com sobrepreço, o presidente Bolsonaro não viu nada
esquisito. Ao mesmo tempo, sem nunca ter apresentado nenhum indício,
continua afirmando que eleição sem voto impresso é sinônimo de fraude.
Não tem provas, não tem nenhum dado efetivo, mas é crescente sua vontade
de difamar o sistema eleitoral.
O
descaramento de Jair Bolsonaro é constrangedor. Basta sair uma pesquisa
indicando queda de aprovação do seu governo, ou vir a público um novo
escândalo na pasta da Saúde, que Jair Bolsonaro aciona sua artilharia e
suas milícias digitais contra a urna eletrônica. Na semana passada,
depois das revelações trazidas pela CPI da Covid, Jair Bolsonaro ameaçou
dizendo que, se não tiver impressão do voto, não haverá eleições no ano
que vem.
Tal
é a campanha de desinformação contra a urna eletrônica promovida por
Jair Bolsonaro que oito procuradores-gerais eleitorais anteriores a
Augusto Aras assinaram, no dia 12 de julho, um “testemunho em defesa da
verdade e do sistema eleitoral brasileiro”, ressaltando que “jamais
houve o mínimo indício comprovado de fraude”.
“Insinuações
sem provas, que pretendem o descrédito das urnas eletrônicas, do voto e
da própria democracia, devem ser firmemente repelidas em defesa da
verdade e porque contrariam a expectativa de participação social
responsável pelo fortalecimento da cidadania”, disseram os antigos
procuradores-gerais eleitorais.
Diante
dessa contundente manifestação sobre a lisura das urnas, a difusão de
desconfiança contra o sistema eleitoral, pondo em dúvida a realização do
próximo pleito, configura evidente crime de responsabilidade. E, como
se sabe, a prática de crimes não é solucionada por conversas entre
autoridades.
No
mesmo dia em que foi aberto o inquérito para investigar Jair Bolsonaro
por crime de prevaricação, o presidente do STF, ministro Luiz Fux,
conversou com o presidente Bolsonaro, pedindo-lhe que “respeitasse os
limites da Constituição”. Louvável é a disposição do ministro Luiz Fux
de lembrar o chefe do Executivo federal do compromisso, assumido ao
tomar posse no cargo, de respeitar a Constituição. Mas esse diálogo não
apaga, por óbvio, ações e omissões passadas que eventualmente
configuraram crime.
O
papel do Supremo – e, de forma especial, do seu presidente – é defender
a Constituição. As instituições podem e devem dialogar, mas, sobretudo,
devem cumprir suas atribuições de forma independente. Numa República,
ninguém – seja ministro do Supremo, pastor evangélico ou presidente da
República – tem competência para oferecer alguma rota de impunidade. A
lei vale para todos, inclusive e principalmente para o presidente da
República.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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