Parlamentarismo está fora de cogitação enquanto classe política acreditar em duendes. Bolívar Lamounier para o Estadão:
O peixe não vê a água” (ditado espanhol)
É deveras notável como nós, brasileiros, nos recusamos a refletir sobre dificuldades bem previsíveis que nos aguardam.
“Refletir”
é dizer pouco: dezenas de milhares recusam-se a colaborar no combate à
pandemia. Preferem uma “festinha” clandestina. E milhões parecem não
perceber que mais uma década brincando de populismo – Lula x Bolsonaro –
significará uma prolongada estagnação de nossa economia. Não percebem
que megainvestidores – empresas ou fundos de pensão – não verão com bons
olhos um país afundado numa polarização estéril, travejado por
malquerenças dos mais variados tipos e que agora tem até insinuações
militares contra o nosso principal ativo, que é a regularidade do
processo eleitoral.
Dessa
persistente obtusidade decorre um colossal equívoco. Tendemos a pensar
que nossas várias mazelas permanecerão constantes durante anos e anos de
estagnação econômica. Isso absolutamente não é verdade. O mais provável
é um retrocesso ou deterioração cada vez mais difícil de reverter. A
renda per capita brasileira equivale a um quarto da do Mississippi, o
Estado mais pobre da Federação norte-americana. Tente o leitor imaginar
este país daqui a 20 anos. É plausível supor que, em tal cenário, os
níveis de violência que diariamente nos atormentam poderão ser
reduzidos, ou sequer que permanecerão constantes? Que conseguiremos
melhorar nossas condições educacionais e nosso nível de bem-estar, de um
modo geral?
No
quadro acima esboçado, uma classe política minimamente lúcida e
destemida trataria de reforçar as instituições, se possível empreendendo
uma reforma política séria. A nossa, infelizmente, dista muito desse
padrão, o que a leva a persistir num segundo colossal equívoco. No que
toca à organização constitucional, sabemos todos, ou deveríamos saber,
que o busílis é o sistema presidencialista de governo, piorado, em nosso
caso, por nossa fórmula de sistema eleitoral proporcional e uma
legislação partidária estapafúrdia.
É
curioso constatar o que uma classe política que se julga “pragmática” e
“realista” sempre invoca, a fim de manter o sistema presidencialista,
numa suposta fixação cultural de nosso povo na figura do “pai”, do
“chefe”, daquele que manda. Sem um “governo forte”, dizem, não temos
como assegurar a unidade do Executivo e a estabilidade política.
Confundem a velha prática de distribuir migalhas aos milhões de
miseráveis que não conseguem trabalho com as tortuosas elucubrações
culturais que sempre deleitaram nossos literatos e historiadores.
Uma
vista d’olhos sobre nossos 130 anos de República presidencial é
suficiente para desnudar tais sandices, mas não precisamos ir tão longe.
Basta observar que, mesmo nos 21 anos de governos militares
(1964-1985), a sucessão presidencial, mesmo controlada pelo método
indireto do colégio eleitoral, registrou diversos episódios
tumultuários. A única exceção foi a sucessão do general Emílio
Garrastazu Médici pelo general Ernesto Geisel, respaldado este por seu
irmão Orlando Geisel, que à época ocupava a pasta da guerra. João
Figueiredo, o último general-presidente, saiu do Planalto pela porta dos
fundos para não cumprimentar o novo presidente.
Ao
tratar da questão do sistema de governo em seu livro O Regime
Semipresidencial (Editora Sumaré, 1992, pág. 27), o mestre Maurice
Duverger não mede palavras. Observa que “o sistema presidencial (puro) é
intrinsecamente propenso à instabilidade. Jamais funcionou a contento a
não ser nos Estados Unidos. Noutros países, ele degradou-se em
presidencialismo, vale dizer, em ditadura”. Cabe indagar se Duverger
continuaria a tratar os Estados Unidos como exceção após a eleição de
2016, que levou Donald Trump à Casa Branca.
Uma
reforma abrangente, que de fato instaure o sistema parlamentarista de
governo, permanecerá fora de cogitações enquanto a classe política
acreditar em duendes e no saci-pererê. Dado que, entre nós, o mito do
“governo forte” é inseparável da eleição direta do chefe de Estado, o
máximo que nossas elites se dispõem a considerar é o
semipresidencialismo francês: presidente eleito pelo sufrágio universal e
primeiro-ministro indicado por ele e aprovado pela Câmara dos
Deputados. Pode ser que tal alternativa seja melhor que o atual sistema
brasileiro, mas também pode ser um tiro pela culatra, a depender das
circunstâncias e da exata formulação da engrenagem institucional.
Vale
a pena lembrar que a consolidação do problemático modelo francês da
“águia de duas cabeças” foi abençoada por 30 anos seguidos de
crescimento econômico e por uma notável linhagem de bons presidentes,
entre os quais, para começar, o marechal De Gaulle, depois Pompidou,
Giscard d’Estaing e outros, chegando ao próprio François Mitterrand, que
deixou de lado seu socialismo e trabalhou ativamente pela abertura da
economia, melhorando a competitividade externa da França. Em seu
discurso natalino de 1988, Mitterrand declarou: “A França é nossa
pátria, mas a Europa é o nosso futuro”.
SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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