Com o uso disseminado dessa transinvenção chamada linguagem neutra, a mais oprimida das vogais finalmente ganha destaque. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff:
Todos
aprendemos na escola a repetir as vogais pela ordem “a, e, i, o, u”.
Por quê? Não tenho a menor ideia. E, pensando bem, até me revolto um
pouco com a criança alienada que fui e que não ousou questionar a
professora sobre essa aberração hierárquica. Podia muito bem ser “i, e,
u, o, a” ou “e, i, a, u, o”. A sequência só não podia começar com o
patriarcal “o”.
Aliás,
uma coisa a se destacar sobre as conquistas feministas ao longo do
século é o fato de a letra “a” ser a primeira do nosso alfabeto latino.
Pouca gente sabe disso, mas antes de Simone de Beauvoir, o alfabeto
começava pelo “o”. Foram necessários milhares de sutiãs queimados para
se vencer o machismo alfabético e para que o “a”, tradicionalmente
associado a pessoas com vagina, assumisse essa posição de destaque.
De
qualquer forma, uma coisa que sempre me incomodou na hierarquia própria
das vogais foi o desprezo ao “u”. Ou, para usar a terminologia da moda,
a ufobia (não confundir com ufofobia, que é o desprezo aos ufos, nem
ufofofobia, que é o desprezo aos unicórnios fofos). Desprezado pelas
demais vogais, o “u” sempre sofreu preconceito e, consequentemente, teve
de se contentar com um papel histórico menor.
Na
saudosa Enciclopédia Delta Universal da minha infância, por exemplo, a
letra “a” ocupava todo um tomo, enquanto o “u”, coitado, tinha que
dividir espaço com o “v”, o “x” e o “z” – aquele sacana. Na lista
telefônica, o “a” era cheio de aristocráticos Albuquerques e Almeidas,
enquanto o “u” se contentava com os raros e pobretões Urbanos e Uchoas.
As pessoas têm sangue tipo “A”. Por acaso você conhece alguém com sangue
tipo “U”?
E
no jogo imperialista estadunidense “stop!”, que os cariocas chamam de
“adedanha” ou “adedonha” (do tupinambá clássico “adhedhonyah”, que
significa “brincadeira que sempre acaba em briga”)? Quando a letra
sorteada era “a”, todo mundo ficava feliz. Nome, país, capital, animal e
carro que começam com a letra “a” todo mundo sabe. Agora, quando a
letra sorteada era “u”, sempre surgia alguém para sugerir “escolhe outra
senão eu não brinco mais”. O que era até compreensível, naquela Idade
das Trevas. Afinal, quero ver você me dizer, sem pesquisar, um esporte
ou uma moeda que comecem com a letra “u”.
Uni-vos!
Por
sorte, essa transinvenção genial chamada linguagem neutra (me recuso a
usar o termo “não-binária” por ser, obviamente, biexcludente) surgiu a
tempo de corrigir a injustiça, dando um protagonismo inédito ao oprimido
“u”. Não que essa vogal que até para se dizer humilhada precisa da
ajuda do ”h” tenha aceitação universal. Depois de vencer o “x” como
substituto não-binário (ops!) das desinências de gênero, o “u” ainda tem
um longo caminho de luta se pretende substituir de vez o “e” no coração
de todus. Us do mundo, uni-vos!
E
a que se deve o milagre? Mistério! Há detratores, inclusive, que dizem
que o “u” se recusava a se submeter a esse uso. Que ele era
ultrarreacionário ou ultraconservador, não lembro mais. Ou que ele
preferia ficar quietinho na dele, arrancando das pessoas uma risada aqui
e ali ao ser usado em rimas impublicáveis. Seja qual for o motivo, a
verdade é que hoje o “u” ostenta todo garbosão o título de “vogal
oficial do movimento trans”. Uhu!
Têm
contribuído para que a honra do “u” seja recuperada em toda a sua
formosura também toda uma geração disruptiva, para a qual as normas
ortogramaticais são reconhecidamente uma forma de sedimentar uma
estrutura segregacionista ulterior, hetero-organizada de modo a legar ao
“u” o papel universal ultrajante de último.
Tanto
é assim que, pela primeira vez na história, uma Olimpíada não ficará
marcada pela paz universal, pela derrubada dos mitos raciais, pelo
terrorismo, por casos de doping, pelos tombos no hipismo ou pelos
meritocráticos (argh) recordes, e sim pelo uso apropriado da linguagem
neutra. Isso graças aos sempre eruditos jornalistas esportivos que,
ousada e revolucionariamente, têm se recusado a chamar os admiráveis e
corajosos “elus” de “elas” ou “eles”, como exige a sociedade
reacionária.
Toda
vez que elu entra em campo, elu cai na piscina, elu saca, elu corre e
elu tira o lugar de uma pessoa com vagina no pódio, damos um passo a
mais rumo à criação de uma ditadura pronominal. Essa etapa intermediária
é importante para que alcancemos nosso objetivo máximo: a instauração
da utopia vogal. Quando, finalmente e de uma vez por todas, “a”, “e”,
“i”, “o” e “u” serão iguais e indiscerníveis nas palavras.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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