Simone Biles é o reflexo da atual sociedade, que enaltece quem chora mais, quem se vitimiza e quem se ofende por tudo. Ana Paula Henkel para a revista Oeste:
Entramos
em mais uma Olimpíada. De quatro em quatro anos vivemos, através das
lentes dos fotógrafos e das telas de TV, acontecimentos que mexem
emocionalmente com milhões de famílias pelo mundo. A torcida por seu
país, histórias de superação, derrotas inesperadas, vitórias
extraordinárias. Se o mundo dos esportes é fascinante, o dos esportes
olímpicos é hipnotizante.
Todo
atleta olímpico tem sua história, e ela é única. Caminhos parecidos
entre atletas podem até se esbarrar, mas jamais serão iguais. Família,
treinamentos, técnicos, escola, relacionamentos, contusões, traumas,
tudo tem um peso diferente para cada atleta. É difícil estabelecer
certezas nas muitas vias que cada um percorre até chegar a uma
Olimpíada, mas é exatamente nas poucas e profundas similaridades entre
nós que percebemos que existe algo em comum entre todos os que estão
ali.
Como
ex-atleta olímpica pelo Brasil em quatro edições dos Jogos, não tenho
resposta para as centenas de perguntas que chegam até mim nesta época.
Como mencionei, cada história é única, mas creio que posso afirmar uma
ou duas coisas sobre esse mundo. Às vezes, assistindo aos Jogos com a
família, os filhos perguntam “Como você sabia que isso ia acontecer, que
ele erraria?”, “Como você sabia que ela recuperaria?”. A resposta é:
não sei. Talvez algo no olhar, na linguagem corporal, alguma intuição
por já ter estado lá e saber, na pele, o que pode estar passando naquele
momento na cabeça daquele atleta. Todos nós ali já vivemos um turbilhão
de emoções: medo, alívio, dor, alegria, decepção, dúvida,
entorpecimento pela glória, humilhação pela queda.
Meu
primeiro contato com os Jogos Olímpicos, e as emoções que eles podem
trazer, foi em 1980, na Olímpiada de Moscou. No interior de Minas, em
Lavras, lá estava a menina de 8 anos, aos prantos, assistindo à
cerimônia de despedida daqueles Jogos com o inesquecível ursinho Misha,
que também derramava uma lágrima numa coreografia feita pelo próprio
público nas arquibancadas. Ali foi apenas o começo de um longo namoro e
casamento com o esporte. Eu mal podia esperar pela próxima edição, e
logo veio a Olimpíada de Los Angeles, em 1984, que nos deu a geração de
prata no vôlei masculino num jogo inesquecível contra os donos da casa.
Mas aquela Olimpíada me deu muito mais do que o amor necessário para
querer defender o Brasil jogando vôlei. Ela me deu Gabriela Andersen. E
eu nunca mais fui a mesma.
Assim
como as reuniões de família nesta semana para assistir aos eventos
esportivos de Tóquio, em 1984 estávamos todos em casa diante da TV para
acompanhar a chegada da maratona feminina. Foi quando Gabriela Andersen,
da Suíça, entrou no Coliseu de Los Angeles e mudou para sempre minha
alma de atleta. Ninguém se lembra quem foi ouro, prata ou bronze naquela
prova, mas todos se lembram de Gabriela Andersen.
Os
30 graus centígrados de calor e umidade de agosto em Los Angeles
estavam insuportáveis e longe das condições ideais para uma maratona.
Além disso, Gabriela, de alguma forma, havia perdido a estação de água
no caminho. Muito desidratada, a maratonista entrou no estádio olímpico
quase tropeçando nas próprias pernas. Ela se inclinava desajeitadamente
para a esquerda e para a direita, cambaleando através das raias da
pista. Foi uma visão desesperadora para os espectadores nas
arquibancadas e para os espectadores em todo o mundo que seguiam a prova
pela TV. Milhares de pessoas assistiam atônitas àquela cena e torciam
para que ela não desabasse. Diante daquela imagem emocionante e
agonizante, o estádio inteiro, agora de pé, começou a incentivar
Gabriela a completar a prova.
Seu
marido, Dick Andersen, acompanhava angustiado das arquibancadas,
enquanto os oficiais e médicos caminhavam ao lado dela perguntando sobre
sua condição. Em entrevistas, Gabriela lembra que essa era a primeira
maratona feminina em Olimpíadas e recorda o que dizia a si mesma:
“’Tente continuar correndo’. ‘Tente ficar ereta’. Mas meus músculos
simplesmente não respondiam e tudo se deteriorou nos últimos 400 metros.
Nesse ponto, apenas pensei: ‘Estou na Olimpíada, não pare!’.”
Enquanto
ela cambaleava, os gritos de incentivo de milhares de espectadores
ficavam cada vez mais altos. “Lembro-me claramente dos aplausos e do
barulho. Foi simplesmente incrível. Estava muito alto. Não esperava algo
assim. Isso provavelmente me manteve de pé também!” No dia 23 de agosto
de 1984, em Los Angeles, depois de 2 horas, 24 minutos e 52 segundos,
Gabriela Andersen finalmente alcançou a linha de chegada, caindo nos
braços de três médicos que a carregaram para fora da pista.
No
mesmo 23 de agosto de 1984, em Minas Gerais, uma menina de 12 anos está
quase sem conseguir respirar diante da TV, com os olhos cheios de
lágrimas e hipnotizada por aquele momento. Uma única coisa passava pela
minha cabeça: “Agora eu entendi”. Eu havia sido engolida pelo verdadeiro
espírito olímpico.
Como
em toda Olimpíada, um drama marcou Tóquio nesta semana. A superestrela
da ginástica e atual campeã olímpica Simone Biles desistiu da competição
individual geral dos Jogos para se concentrar em seu “bem-estar
mental”. A decisão veio um dia depois que Simone se retirou da final de
equipe após uma apresentação bem abaixo do esperado no salto. Ao falar
para a imprensa, ela citou sua saúde mental como o motivo. Ao comunicar a
saída de sua maior estrela, a federação norte-americana de ginástica
disse em um trecho da nota oficial: “Após uma avaliação médica
adicional, Simone Biles retirou-se da competição individual geral final.
Apoiamos de todo o coração a decisão de Simone e aplaudimos sua bravura
em priorizar seu bem-estar. Sua coragem mostra, mais uma vez, por que
ela é um modelo para tantos”.
Posso
até entender a decisão de Simone. Dramas psicológicos no mundo
esportivo, principalmente no universo da alta performance, não são
raros. As pressões são muitas, eu sei. Não conheço as condições
psicológicas da atleta e o que, de fato, a levou a tomar essa decisão.
Posso tranquilamente me solidarizar com suas possíveis batalhas
internas, e espero que ela saia desse redemoinho mental que, muitas
vezes, pode ser perigoso. Dito isso, meu problema com essa situação é
outro.
O
primeiro é o fato de que Simone não competia sozinha. Ela fazia parte
de uma equipe que dependia dela, que se preparou e treinou durante anos
para este momento. Com sua decisão, a atleta não prejudicou apenas o seu
caminho. Respeitaria muito mais as suas palavras se elas fossem
suportadas com o ônus de uma decisão individual. Simone não fez isso.
Depois da performance com notas baixas na qualificação, ela desistiu. A
melhor ginasta do elenco dos EUA, uma das atletas olímpicas
norte-americanas mais festejadas de todos os tempos, optou por abandonar
seu time no meio da final. Suas companheiras de equipe perderam o ouro e
terminaram em segundo, atrás da lendária rival na ginástica, a
arqui-inimiga Rússia. Medo do fracasso?
Na
coletiva, com as companheiras tentando mostrar algum apoio, mas ainda
com os olhos arregalados e um pouco perdidos, Simone Biles reclamou que a
Olimpíada não foi “divertida” neste ano: “Estes Jogos Olímpicos, eu
queria que fossem para mim mesma quando entrei e eu senti que ainda
estava fazendo tudo isso para outras pessoas”. Mais tarde, ela disse que
é importante “colocar a saúde mental em primeiro lugar” porque, se não o
fizer, “você não vai gostar do seu esporte” e reclamou da “pressão” que
está sofrendo.
Sinceramente?
Não há nada de terrivelmente surpreendente nas razões que ela
apresentou. A pressão a que está submetida uma atleta mundialmente
famosa em um palco global é bastante pesada, tanto no nível emocional
quanto no físico. Não é um crime desistir sob pressão, mas quando isso
se tornou algo para ser admirado com profunda reverência? Esse é meu
segundo problema em todo esse evento.
Se
Simone Biles tivesse desistido da competição em equipe e se desculpado
após o fato, com um pouco mais de humildade, talvez o público reagisse
de outra maneira e o assunto seria encerrado. É difícil competir em
Olimpíadas. Todos nós temos, uma vez ou outra, vontade de desistir de
tudo. É por isso que, quando alguém desiste, normalmente balançamos a
cabeça e dizemos: “Que pena, sinto muito”, e seguimos em frente com
nossa vida.
O
problema é que agora somos exortados a não apenas entender por que
alguém desiste de algo. Temos de aplaudi-lo por isso. O que torna a
história de Simone Biles preocupante não é que a equipe de ginástica
feminina teve de se contentar com uma medalha de prata — o que me
incomoda é o fato de que a atual mídia e partes da sociedade querem que
celebremos a covardia de um soldado ao abandonar seus companheiros no
campo de batalha. Poderíamos tranquilamente dizer: “Simone Biles
desistiu da Olimpíada, ela está com problemas. Que pena”. Mas o que
querem é que digamos: “Simone Biles desistiu. Não estará mais com o time
porque ela precisa pensar nela. Que ato corajoso!”.
Não,
não, não é corajoso. Pode ser humano, mas é o oposto de coragem. Ter
coragem é colocar o time acima de suas dores, físicas ou emocionais,
quando você já está comprometida com ele. Simone Biles poderia ter se
inspirado na ginasta Kerri Strug, também norte-americana, que competiu
na Olimpíada de 1996, em Atlanta. Na disputa por equipes, um evento
dominado pelos soviéticos por décadas e nunca vencido pelos Estados
Unidos, os norte-americanos competiriam com as seleções da Rússia,
Romênia e Ucrânia. Depois de um salto, Kerri aterrissou bruscamente e
lesionou dois ligamentos no tornozelo. Ela era a última peça do time que
poderia trazer o ouro para as norte-americanas. Diante da importante
lesão, a ginasta poderia ter desistido, mas se negou a abandonar a
competição. A equipe médica tentou estabilizar o tornozelo com
esparadrapos, e Kerri, com dois ligamentos comprometidos, saltou… Sim, o
final é esse mesmo que você está pensando. As norte-americanas
venceram, e Kerri foi carregada até o pódio para receber o tão sonhado
ouro olímpico em equipes para a ginástica dos EUA.
Entre muitos esportes olímpicos, talvez a ginástica seja um dos mais cruéis com seus atletas. Além da pressão física, há casos de supressões hormonais (para que as atletas não cresçam) e até de assédio e abusos sexuais. Não sabemos o que sucedeu na mente de Simone Biles, e ela não é uma vilã por ter desistido, mas também não é uma heroína. Simone é o reflexo da atual sociedade, que enaltece quem chora mais, quem se vitimiza e quem se ofende por tudo. Em uma sociedade com balaios coletivistas, divididos em categorias “negros”, “mulheres”, “gays” etc., é interessante ver que aplausos, elogios e contratos de publicidade são dados àqueles que colocam exatamente as suas necessidades e desejos pessoais em primeiro plano.
Gabriela
Andersen, hoje com 76 anos, em uma entrevista para o canal oficial dos
Jogos Olímpicos, disse que o que a surpreendeu foi a compaixão e a
reação dos espectadores e dos atletas. Ela relata que estava com muita
vergonha pela performance ruim (Andersen chegou em 37º lugar, quase
último) e que se sentia culpada. Ela achava que não merecia tanta
atenção. “Na época eu teria trocado por qualquer coisa entre o 10º e o
15º lugar para não ter aquilo que considerei apenas um espetáculo”,
disse. “Mas agora, olhando para trás, posso ver que as pessoas se
identificaram por causa da luta. Se você realmente se dedicar, poderá
superar muitos obstáculos. Há lição em tudo.”
Vitória
não é apenas vencer os adversários e abraçar a glória, muitas vezes
entorpecente e traiçoeira. É superar os próprios limites e, como
Gabriela Andersen, inspirar milhões a não desistir, mesmo chegando em
último lugar, mesmo com o ego ferido.
O
espírito olímpico é justamente o da superação e do sacrifício, mesmo
que isso não lhe traga nenhum esplendor. E essa lição não fica restrita
ao esporte, ela o acompanha por toda a vida. Salve, Gabriela Andersen!
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