O presidente não mente de forma eventual, mas sistemática. A reação a isso deve ser institucional, com economia rigorosa de expletivos e exclamações. Editorial do Estadão:
O
presidente Jair Bolsonaro deu 1.682 declarações falsas ou enganosas em
2020, o que dá uma média de 4,3 por dia, segundo um estudo anual
divulgado ontem pela Artigo 19, organização britânica de defesa da
liberdade de expressão.
Esse
espantoso número mostra que o presidente não mente apenas de forma
eventual, mas sistematicamente, o que constitui um evidente método. Sua
intenção, já está claro, é usar o destaque conferido a seu cargo para
confundir a opinião pública, de modo a dificultar a formação de
consensos sobre a realidade. Sem esses consensos mínimos, o debate
democrático se torna inviável, o que é precisamente o que Bolsonaro
almeja.
Não
à toa, como mostra o mesmo estudo, o presidente e seus assessores deram
nada menos que 464 declarações públicas contra a imprensa em 2020,
justamente para desacreditar as informações baseadas na realidade –
matéria-prima do jornalismo profissional – e legitimar distorções
produzidas pelo departamento de agitação e propaganda do bolsonarismo.
Se
não traz novidade, pois afinal a mendacidade crônica de Bolsonaro e de
seus camisas pardas, a esta altura, já é notícia velha, o estudo da
Artigo 19 tem o mérito de dar a dimensão chocante daquilo que apenas se
intuía: para Bolsonaro, mentir é uma virtude, talvez a principal da
seita que lidera.
Um
presidente com essas características impõe desafios inéditos na
história republicana. As instituições democráticas, por definição, devem
se alicerçar na veracidade dos fatos, para que as decisões que afetam a
sociedade respeitem a realidade e, assim, sejam efetivas e aceitas como
legítimas mesmo por aqueles que a elas se opuseram.
Quando
a mentira impera nas mais altas esferas de governo, as decisões das
instituições democráticas serão sempre objeto de desconfiança,
instaurando-se o conflito – que é precisamente o combustível dos regimes
de vocação autoritária. O conflito, tal como idealizado por esses
governos, presume a criação de inimigos ubíquos, cujo combate demanda a
politização dos menores aspectos da vida cotidiana, impedindo, mesmo nas
relações pessoais e familiares, a formação de consensos triviais.
É
claro que, num tal estado de coisas, a democracia se inviabiliza, razão
pela qual as instituições democráticas devem reagir com firmeza a cada
mentira proferida pelo presidente.
No
entanto, essa reação deve ser, com o perdão da redundância,
institucional. Isto é, deve se limitar a demonstrar as mentiras do
presidente, com economia rigorosa de expletivos e exclamações. Deixar-se
levar pela emoção, produzindo respostas exageradas às imposturas
presidenciais, é fazer exatamente o que pretendem os vândalos da
democracia: rebaixar o debate ao nível da briga de rua.
Por
esse motivo, não foi adequada a recente reação do Supremo Tribunal
Federal (STF), por meio de sua Secretaria de Comunicação, à enésima
declaração do presidente Bolsonaro acerca das decisões da Corte que,
segundo ele, o impediram de interferir na administração do combate à
pandemia de covid-19.
“O
STF não proibiu o governo federal de agir na pandemia! Uma mentira
contada mil vezes não vira verdade!”, exclamou o Supremo em sua conta no
Twitter, ao divulgar um vídeo para esclarecer que jamais proibiu
Bolsonaro de trabalhar para conter a pandemia.
Além
do tom indignado, fora de lugar, o uso de uma expressão que serve
frequentemente para caracterizar a propaganda do regime nazista (“Uma
mentira contada mil vezes se torna verdade”) cria desnecessário ruído.
Ademais,
e isso talvez seja o mais importante, não serão comparações com o
nazismo que farão o presidente se emendar. Ao reagir à mensagem do
Supremo, Bolsonaro mentiu novamente, dizendo que a Corte “cometeu crime”
por ter dado a governadores e prefeitos a possibilidade de “suprimir
todo e qualquer direito previsto no inciso (sic) 5.º da Constituição,
inclusive o ir e vir” – em referência às medidas de isolamento social. E
arrematou: “Fizeram barbaridades acobertados pelo Supremo”.
Como se vê, ao presidente interessa transformar o País numa imensa rinha de galos. Nela, Bolsonaro joga em casa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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