Fico a pensar que é a estranheza, que subsiste para lá de todas as afinidades, que, juntamente com a diversidade das formas e a abundância das cores, nos desperta o maravilhamento com o mundo animal. Coluna do professor Paulo Tunhas, publicada pelo Observador:
Voltamos
sempre ao que não conseguimos explicar, ao que nos surpreende
constantemente, por mais avisados que estejamos. As leis da atracção não
falham. Comigo, acontece, entre outras coisas, com a música e com os
documentários sobre animais: sou capaz de passar horas – e, se pudesse,
dias – a vê-los. Já vi dezenas e dezenas de vezes toda a espécie de
imagens de crocodilos a apanharem gnus que atravessam, em migração, o
rio, e fico sempre de olhar colado ao que vejo. Penso invariavelmente
nas mil razões que podem existir para esta atracção, mas as respostas
que encontro nunca me satisfazem plenamente. Ainda ando à procura da
boa, da mais geral e inclusiva, embora tanto tempo à espera dela me
desespere um bocado de chegar a bom porto. Tenho algumas razões
parciais, e sei também o que não é que me provoca a atracção. A natureza
em geral, por exemplo. Gosto, como toda a gente, de paisagens, belas ou
sublimes, mas sou perfeitamente incapaz de ficar muito tempo a vê-las,
sentado num sofá, em frente à televisão. É outra coisa.
É
preciso dizer que há maus documentários sobre animais – os da National
Geographic, para citar um caso, estão longe de serem todos bons – e há
documentários razoáveis que são estragados pela narração. Não me refiro
sequer àquela absurda mania de dar nomes próprios aos animais – “a
Malika parou com as suas filhas Tuka e Ziga junto a um grupo de
antílopes…” -, estou antes a pensar em narrações, como, por exemplo, a
de uns bons programas que a SIC passa, que, sem dúvida com as melhores
intenções do mundo, adoptam um estilo ternurento, com um sorriso
cúmplice a ornar a narração, muito semelhante ao que a Dra. Felisbela
Lopes (de quem sou fã) usa para falar dos políticos, esses marotos que,
quando dizem uma coisa, o fazem sempre com uma intenção que não revelam e
que ela nos explica. Acho o tom um insulto à dignidade dos animais
(embora não dos políticos). Não menos irritante é o estilo que abusa de
pathos que apanhei num dvd da National Geographicsobre migrações (um
tema apaixonante) que me chegou, por erro meu, em versão francesa. Os
animais, a acreditar no narrador, viviam numa angústia perpétua e
parecia que tinham saído todos, não da arca de Noé, mas do Ser e tempo
de Heidegger. Vi um quarto de hora e parei, deixando o resto das seis
horas para quando o PAN me contratar para escrever um tratado sobre o
existencialismo animal, um tópico essencial que representa infelizmente
uma lacuna gritante no seu actual programa.
Felizmente,
há muito bons documentários. Há um, da BBC, sobre o parque natural de
Yellowstone que é uma obra-prima absoluta, escrita e ilustrada na
perfeição. E há as maravilhas inacreditáveis que são quase todos os
documentários feitos ou narrados pelo meu velho amigo David
Attenborough. Ainda esta semana vi a história de uma aranha de
Madagáscar, do tamanho de uma unha, que produz e lança um fio de seda de
25 metros sobre um rio, que se prende a uma árvore na outra extremidade
e que ela atravessa em seguida até ao meio, para aí construir a sua
teia, onde apanha os insectos que, justamente, só por aí passam. E, já
agora, também a obra de um peixe japonês que constrói, com as
barbatanas, uma fantástica escultura na areia para atrair a fêmea. Os
programas de Attenborough são fabulosamente filmados, o som dos animais
perfeitamente captado, e a narração formidavelmente inteligente e, sem
uma falha, no tom certo. Não se vê aquilo para aprender nada (embora se
aprenda), vê-se apenas para se ficar maravilhado, mergulhado numa
incredulidade que, paradoxalmente, satisfaz o espírito.
Essa
satisfação vem certamente da extraordinária diversidade animal, da
imensa profusão de cores, formas e seres que observamos e à beleza da
qual somos sensíveis. E vem, ao mesmo tempo, da perpétua redescoberta do
sentimento da unidade da vida e da afinidade que nos liga, no
comportamento e por vezes nas formas, a todos esses seres. Somos em
muito a eles semelhantes, no próprio desejo da vida que neles
descobrimos de forma indisfarçada e ostensiva (e é por isso que
achar-lhes uma graça ternurenta é, no mínimo, falhar o alvo). Mas isso
não basta para o maravilhamento. É preciso que igualmente experimentemos
a irredutibilidade da sua existência ao nosso modo de ser. Um filósofo
perguntou-se um dia “como é ser um morcego?”. A resposta dele é que não
podemos saber (ele quer ir muito mais longe do que esta simples
resposta, mas isso não vem ao caso para aqui). A estranheza, fonte de
beleza e de prazer, que os animais nos provocam, é como que esta
pergunta mil vezes magnificada: como é que é ser um animal distinto de
nós? Como é, por exemplo, ser um urso polar que longamente olha o céu? O
que é que ele vê? Como é que ele existe?
Reli
várias vezes, nesta última semana, um dos maiores poemas do século XX,
as Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke (do qual existem pelo menos
duas traduções portuguesas, por razões distintas entre si muito
recomendáveis: a de Paulo Quintela e a de Vasco Graça Moura). Nele se
cruzam vários mundos – o dos anjos, o dos seres humanos, mortos e vivos,
o das marionetas e o dos animais. Numa leitura possível do poema, ele
descobre um percurso que vai da busca da transcendência à descoberta da
felicidade da imanência terrestre. “Estar aqui é glorioso”, “Estar aqui é
muito”.
Antes
de chegar a esta final conclusão reconciliadora, Rilke opõe os seres
humanos aos animais. Os seres humanos, atormentados pela consciência da
morte e da sua efemeridade, vivem no interior de um “mundo
interpretado”, no qual nunca verdadeiramente se sentem em casa. Não há
verdadeira unidade, tudo é separação. Nada no mundo humano é o que
realmente é. Nem as crianças nem os amantes verdadeiramente escapam à
lei da separação: também eles são, neste mundo, espectadores, separados
do espectáculo que contemplam. Na Oitava Elegia aparecem os animais,
cuja existência é imediata e não obscurecida pela separação que nos
atormenta. Os animais vêem aquilo que misteriosamente Rilke chama o
Aberto. O Aberto, conjectura-se, é aquilo que se dá imediata e
plenamente, a própria existência que não se encontra fechada num casulo
interpretativo. Só através do olhar dos animais nós temos acesso a esse
algo não interpretado que é o sentido pleno da existência.
As
Elegias acabam, como disse, com a descoberta da magnificência que é,
para os seres humanos, existirem na terra. Portanto, por via indirecta,
também eles finalmente têm acesso a algo próximo do Aberto que se
ausculta no olhar dos animais. Mas permanece que é nos animais que
encontramos esse olhar, que é o segredo da sua irredutível estranheza ao
nosso mundo fechado. Francamente, apanho-me a pensar que é essa
estranheza, que subsiste para lá de todas as afinidades, que, juntamente
com a diversidade das formas e a abundância das cores, desperta em nós o
maravilhamento com o mundo animal. Há ali uma existência pura que nos
é, literalmente, inapropriável. Não sei se essa é a tal grande razão de
que ando à procura para justificar a minha atracção pelos documentários
sobre animais. Mas talvez ande mais perto do que o resto de uma
explicação.
PS.
Surpreende-me que ninguém, em toda esta conversa em torno da morte de
Otelo Saraiva de Carvalho, tenha referido algo que é fundamental para
perceber o mau e o péssimo que ele fez depois do 25 de Abril: a sua
tontice. É um bom exemplo da regra geral que o fanatismo não é uma
condição imprescindível para o mal e para o crime político. A tontice
convenientemente fomentada basta. E, já agora, isso também explica que
ele tenha saído de um longo período de ditos e de feitos mais que
lamentáveis (estou a ser extraordinariamente delicado, se pensarmos nos
muitos assassinatos das FP 25 de Abril), permanecendo, à sua desgraçada
maneira, uma personagem não completamente antipática, como
inevitavelmente aconteceria se fosse um fanático, como tantos havia, e
há, por aí.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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