Ensaio de Rogério Passos Severo e Ricardo Doninelli Mendes, publicado pelo Estado da Arte:
Na
história de uma cultura, alguns episódios parecem cristalizar o
espírito de uma época. Para a nossa cultura moderna e científica, as
descobertas do astrônomo Galileu e sua posterior condenação pelo
tribunal do Santo Ofício, em 1633, estão nessa categoria. Essa sequência
de eventos e o ânimo com que Galileu os viveu exibem de modo límpido
tanto o brilho e o potencial do pensamento científico quanto a infâmia
intelectual e a mesquinharia moral que seguidamente os aguarda. Como
vivemos hoje tempos de renovadas infâmias e mesquinharias, revisitar a
biografia de Galileu é quase um imperativo, sobretudo para as novas
gerações, que poderão então se reconhecer como filhos e filhas que somos
todos da liberdade e da torpeza.
O
livro recém publicado de Mario Livio, Galileu e os negadores da ciência
(editora Record), é uma biografia atualizada do grande astrônomo.
Apresenta de modo acessível suas principais contribuições à ciência
moderna e alguns meandros do seu julgamento e condenação. O autor é um
astrofísico respeitado e naturalmente o ponto forte do livro está na
discussão das descobertas de Galileu à luz do que sabemos hoje. Mas,
claro, há diversas outras boas biografias de Galileu já disponíveis. A
peculiaridade desta reside não apenas na discussão atualizada dos feitos
científicos de Galileu, mas também no contraponto recorrente ao longo
do livro entre as reações negativas que as descobertas de Galileu
suscitaram na igreja e as formas contemporâneas de negacionismo
científico. Mencionam-se sobretudo o negacionismo climático
contemporâneo, que rejeita o aquecimento global por causas
antropogênicas, e o negacionismo biológico, que põe em dúvida a teoria
darwinista da evolução. O livro foi originalmente publicado em inglês em
2020, portanto escrito provavelmente em 2019, antes da pandemia
começar. Tivesse sido escrito mais recentemente, decerto incluiria
também os casos surpreendentes de médicos cloroquineiros e outras
fantasias destes nossos tempos pandêmicos.
Mario
Livio claramente admira Galileu: “não apenas o fundador da astronomia e
astrofísica modernas […] mas também um símbolo da luta pela liberdade
intelectual” (p. 9). Galileu é apresentado como uma espécie de herói,
que vive os seus estágios típicos. Primeiro resolve um conjunto de
problemas (em astronomia) por meio de grandes feitos intelectuais,
depois sofre a reação vil de personagens sombrios, é preso e tem seus
livros proibidos, e ao final é redimido pela história da ciência.
Galileu notabilizou-se como um defensor do modelo heliocêntrico em
astronomia, apresentado inicialmente em 1543 pelo cônego polaco Nicolau
Copérnico. Galileu nasceu em 1564, em Pisa, na Itália, época em que os
modelos astronômicos predominantemente aceitos ainda eram geocêntricos,
isto é, colocavam a Terra no centro do universo. O modelo copernicano
tornou-se amplamente aceito apenas no final do século seguinte.
Inicialmente a discussão e as disputas a esse respeito estavam restritas
aos círculos mais fechados e técnicos da astronomia. Galileu contribuiu
substancialmente para abrir esses debates por meio de argumentos
contundentes e inovações técnicas. Em particular, notabilizou-se por
ter sido o primeiro astrônomo importante a usar lunetas, posteriormente
aperfeiçoadas por ele próprio e rebatizadas de “telescópios”. Lunetas já
eram usadas há bastante tempo na Europa, mas sobretudo para fins
recreativos. Galileu direcionou-os aos astros, onde descobriu as
crateras da Lua, as fases de Vênus, quatro das luas de Júpiter (hoje
conhecemos 79) e, por fim, as manchas solares. Todas essas descobertas
contradiziam os modelos geocêntricos até então predominantes em
astronomia. As crateras da Lua indicaram que sua superfície é imperfeita
e nesse sentido parecida com a da Terra, diferente do que dizia a
tradição, na qual a física dos astros seria bem diferente da física
terrestre. As fases de Vênus — fenômeno em que Vênus aparece
parcialmente iluminada pelo sol, como nas fases da nossa Lua — eram mais
facilmente explicáveis pelo modelo copernicano e nesse sentido também
contradiziam a tradição. As luas de Júpiter mostraram que nem tudo gira
ao redor da Terra e as manchas solares indicavam (pelo seu movimento
rotatório) que o Sol gira ao redor de si, o que era um indício indireto
da tese copernicana, que previa o movimento rotatório da Terra.
Além
dessas descobertas — todas muito impactantes na comunidade científica
da época —, Galileu também formulou e colocou em prática alguns dos
princípios básicos daquilo que hoje conhecemos como ciência moderna. Em
particular, ele concebeu de modo explícito a tarefa do cientista como
ancorada na experimentação e teste de hipóteses. A ciência antiga e
medieval era, nesse sentido, bastante diferente do que passamos a chamar
de ciência a partir da modernidade, uma vez que consistia basicamente
num procedimento de sistematização de observações com base em princípios
metafísicos. Com Galileu e outros “experimentadores” desse período
moderno, as observações passaram a funcionar como um instrumento de
teste de enunciados gerais e não apenas como instrumento de conhecimento
de coisas particulares. Portanto, o estatuto e a função das observações
no interior da ciência mudaram radicalmente. Além disso, Galileu foi um
dos precursores da ideia de que as regularidades da natureza podem ser
apreendidas por fórmulas matemáticas, algo que hoje é o beabá das
ciências naturais. E por fim, Galileu formulou os rudimentos da ideia
moderna de leis da natureza, descobertas empiricamente por meio da
generalização de regularidades observadas. Um exemplo claro da aplicação
dessas ideias todas foram os seus famosos experimentos com o plano
inclinado, por meio dos quais calculou regras para a aceleração da queda
de objetos — tópico mais tarde retomado por Isaac Newton.
Essas
contribuições intelectuais e técnicas de Galileu foram inicialmente
discutidas apenas em círculos mais restritos de cientistas e estudiosos.
No século XVI, não houve reações religiosas significativas ao
copernicanismo. No entanto, o contexto da Reforma protestante produziu
uma caça às heresias no interior do catolicismo. E foi nesse contexto
mais controvertido que funcionou o famoso tribunal da Inquisição que
acabou por condenar Galileu 1633 à prisão domiciliar, obrigando-o a
abjurar suas ideias para evitar punições mais severas. Seus livros,
junto com o de Copérnico, foram incluídos no Índice de livros proibidos
da igreja católica, lá permanecendo por mais de um século (mais de dois
séculos, no caso de Copérnico). A heresia estaria na afirmação de que a
Terra se move, contradizendo algumas passagens bíblicas interpretadas
literalmente. Mas a esse respeito, mesmo o argumento teológico é fraco,
uma vez que supõe que as teses teológicas relevantes incluem não apenas
as que dizem respeito à salvação da alma mas abrangem igualmente a
descrição do mundo físico, algo que autores clássicos da própria
tradição cristã, como Santo Agostinho, já haviam criticado. A opção
inicial de alguns religiosos para conciliar o copernicanismo com as
leituras mais literais da Bíblia consistiu em interpretar os livros de
Galileu e Copérnico como instrumentos matemáticos para o cálculo
observações futuras e não como descrições de como as coisas realmente
são. Nesse sentido, inauguram um tipo de leitura de textos científicos
ainda comum até hoje na filosofia da ciência, onde os chamados autores
“antirrealistas” — como, por exemplo, Bas Van Fraassen — sustentam que
efetivamente não temos como saber se as partes mais abstratas e teóricas
da ciência são descritivas da realidade ou apenas instrumentos úteis
para a previsão de observações.
A
sugestão de Livio é que o negacionismo científico não é novidade de
nossos tempos, mas que acompanha a ciência moderna desde o seu
nascimento. No entanto, fica ainda faltando no livro algum argumento
mais substancial para mostrar que o negacionismo com que Galileu foi
recebido e os negacionismos científicos contemporâneos são espécies de
um mesmo gênero. Uma vez que os contextos sociais e culturais mudaram
muito de lá para cá, está faltando a demonstração da continuidade dos
dois fenômenos. Mas revisitar a obra e a trajetória de Galileu é sempre
uma inspiração para os que prezam a inteligência e a coragem. A tradução
para o português está muito bem feita, vale a pena essa leitura.
Rogério Passos Severo é professor do Dept. Filosofia da UFRGS.
Ricardo Doninelli Mendes é mestre e doutorando em Filosofia na UFRGS.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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