Enquanto esquerdistas cubanos clamam por respeito aos direitos humanos e até uma comissão da verdade para investigar abusos. Vilma Gryzinski:
Aqueles
que se imaginam anti-imperialistas nem chegaram perto do pote de
farinha, enquanto esquerdistas mais espertos, inclusive dentro de Cuba,
estão voltando com um bolo de derrubar os queixos dos que pararam no
tempo.
Como
explicar, do ponto de vista da esquerda convencional e, na América
Latina, castrista até o último fio de barba, que um jovem cubano saia na
rua com um cartaz pedindo “Socialismo, sim. Repressão, não”?
Para
quem não está preso e amarrado aos circuitos neuronais de sempre, a
fase da fidelidade bovina já foi totalmente superada. O festival de
pancadaria com que o regime cubano recebeu a erupção de protestos do 11
de julho foi o empurrão final.
O
site La Joven Cuba, por exemplo, que não pode ser acusado de
identificação com os “trumpistas de Miami”, publicou um editorial em que
rompe com a máxima “que nos repetem até a saciedade” de que qualquer
dissidência é traição num país sitiado por um inimigo poderoso – a
combalida e hoje ridícula narrativa oficial.
“Acontece
que no caminho de guardar silêncio para não dar armas ao inimigo
externo, podem ser perdidas a virtude e a justiça”, anota o editorial.
“Em
nome do decoro e da decência”, La Joven Cuba pede garantias para
Leonardo Romero Negrín, o universitário preso e espancado por proteger
um ex-aluno durante os protestos, e a criação de uma “Comissão de
Verdade e Reconciliação que investigue de maneira transparente” os
abusos sofridos por ele e “outros que possam ter ocorrido”.
Em
termos muito bem calculados, o sociólogo chileno Andrés Kogan
Valderrama escreve no mesmo site que a reação desencadeada pelo regime,
“reprimindo e detendo inclusive figuras da Revolução e da esquerda na
ilha” – mais uma vez aparece o nome de Leonardo Romero – “deveria
despertar a reflexão regional e não ser cúmplice de um processo político
fechado em si mesmo”.
“Proponho
isso porque parece que o processo político cubano se transformou com o
passar do tempo em uma espécie de tabu para boa parte das esquerdas no
mundo, especialmente latino-americanas, onde qualquer crítica a respeito
é rapidamente desmoralizada por seu caráter imperialista e
contrarrevolucionário”.
Kogan
percorre todo o circuito convencional – e equivocado – sobre os males
do embargo americano, que nem embargo é, para acrescentar: “Mas daí a
omitir o caráter centralista, militarista, autoritário e burocrático do
Estado em Cuba, formatado estruturalmente pela partidocracia castrista, é
simplesmente se deixar levar por uma noção estática do que foi a
Revolução nos últimos 62 anos”.
Nada como alguém de esquerda para fazer uma boa autocrítica.
No
El País, que está fazendo uma excelente cobertura dos acontecimentos em
Cuba, Carlos Pagni disse que as penúrias materiais têm seu peso, “mas o
verdadeiro motor das manifestações é a falta de pluralismo e de
liberdade de expressão”.
“Muitos
partidos e líderes de esquerda de toda a região se pronunciaram em
defesa da ditadura e repetiram suas justificativas”, disse, mencionando
os suspeitos de sempre no Brasil, no Uruguai e na Argentina.
“No
entanto, começaram a aparecer fissuras nessa reivindicação.
Dissidências que revelam que o castrismo está sendo ameaçado por um
movimento diferente, novo, dentro e também fora da ilha”.
De
modo geral, a esquerda menos amarrada por visões ideológicas do passado
pede um diálogo que conduza a reformas – e, obviamente, respeito aos
direitos humanos, uma bandeira esquerdista tradicional que os defensores
da ditadura cubana tristemente pisoteiam.
“É
preciso haver mais pontes, tem que haver mais diálogos, mais desejos de
resolver a montanha de temas econômicos e políticos pendentes”, disse
Silvio Rodríguez, praticamente o cantor oficial do castrismo.
Rodríguez encontrou-se com o dramaturgo Yunior García, um dos mais destacados participantes da nova onda cubana.
“Para
mim, o mais doloroso foi escutar que eles, como geração, já não se
sentiam parte do processo cubano”, escreveu o cantor, indicando um dos
aspectos mais interessantes do atual momento: o choque entre a velha
guarda convicta dos ideais revolucionários e as gerações mais jovens,
desligadas dessa conexão.
Nem
todos estão para conversa, a essa altura. Escreveu um leitor do La
Joven Cuba: “Todos os patriotas cubanos, incluindo Fidel Castro e os
revolucionários de 1959, jamais teriam negociado com uma ditadura
repressiva e violenta”.
“Fidel jamais pediu para dialogar com Batista”.
“Não
se negocia com uma ditadura cruel e violenta, é preciso lutar para
tirá-los do poder, seja como for, fazer até o impossível para que seja
de forma pacífica, do contrário será preciso fazer como fez Fidel, à
bala, tirando as armas do inimigo”.
Deu para sentir o clima? Quem não entender pode acabar com a farinha despejada no chão e nenhum bolo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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