A humanidade é mesmo ligada por características comuns e, por mais diferentes que sejam os tipos antropológicos criados pelo totalitarismo e pela democracia, há sempre umas semelhançazinhas aqui e ali. Artigo do professor Paulo Tunhas, publicado pelo Observador:
Aqui
há vários anos, deixei praticamente de ler coisas sobre o horror dos
totalitarismos. Em parte, porque acreditava que sabia tudo o que de
essencial havia a saber sobre o fenómeno – o que não deixava de ser em
parte verdade, a partir do momento em que se percebe que há um princípio
de ilimitação do crime intrínseco a esses regimes -, em parte porque
estava farto de pensar o pior e apetecia-me passar mais tempo a pensar o
melhor. Mantive esta regra informal, com uma excepção ou outra, durante
muito tempo. E ainda me esforço para a manter, sendo as excepções
aquelas que me parecem úteis para iluminar a nossa situação presente.
E
é por a história da Revolução Cultural chinesa (1962-1976) apresentar, à
superfície – quer dizer: longe da abissal profundidade da morte de
milhões –, algumas semelhanças com o movimento woke, que me pus a ler
coisas sobre essa época de terror que provocou o habitual entusiasmo
imoderado de muitos intelectuais ocidentais. Reli o que tinha em tempos
lido de Simon Leys (pseudónimo do grande sinólogo belga Pierre Ryckmans)
e li pela primeira vez o último volume, The Cultural Revolution, da
triologia que Frank Dikötter dedicou ao regime maoista. É claro que
entre o horror totalitário e a democracia há um caminho imenso que não
se percorre de um só passo. Mas, como não poderia deixar de ser, há uma
continuidade entre as paixões do homem totalitário e as paixões do homem
democrático. Não poucas vezes descobrem-se as primeiras no interior das
segundas.
Depois
da Grande Fome (1958-1962), provocada pelo “Grande Salto em Frente” de
Mao Tsé-tung, que fez – pela própria fome ou pelos massacres que à época
tiveram lugar – pelo menos cerca de 45 milhões de mortos, Mao sentiu o
chão debaixo de si pouco seguro. A maneira que encontrou para resolver o
seu problema foi a chamada “Revolução Cultural”, que não foi senão uma
gigantesca guerra civil, fomentada pelo próprio Mao, em que se opuseram
constantemente facções contrárias, todas elas reivindicando-se do
“pensamento Mao Tsé-tung” (é nessa altura que é publicado o Pequeno
Livro Vermelho e que o “culto da personalidade” atinge dimensões nunca
vistas), que Mao apoiava alternadamente.
Os
chefes das facções eram todos eles, num certo sentido, criaturas de
Mao, a começar por Lin Piao – dado a fobias extremas, nomeadamente no
que respeita à água: o simples ruído da água corrente provocava-lhe
diarreias – e pela mulher de Mao, Chiang Ch’ing, e a acabar no mais
ignorado dos Guardas Vermelhos. Mao ia-os apoiando até suspeitar que lhe
procuravam suceder. De facto, o seu grande medo era o de que algum
deles se tornasse o “Khrushchov chinês”, isto é, que lhe fizesse a ele o
que Khrushchov fez a Estaline, o seu modelo, no XXº Congresso do PCUS.
Para eliminar essa possibilidade era necessário inventar a continuação
da “luta de classes” – “Nunca esquecer a luta de classes!” era um slogan
da altura – no interior do regime e fingir que tudo começava do zero.
Diz o excerto de um discurso de 1958 recolhido no Pequeno Livro Vermelho
que a pobreza e a miséria são “coisas más na aparência, mas boas na
realidade. A pobreza leva à mudança, à acção, à revolução. Sobre uma
folha branca, tudo é possível; podemos escrever e desenhar o que há de
mais novo e de mais belo”. Mao fartou-se de escrever e de desenhar.
A
educação devia, em consequência, ser inteiramente revista, de modo a
fazer desaparecer qualquer vestígio do ensino burguês, incluindo as
avaliações dos estudantes segundo os critérios tradicionais.
Destruíram-se templos e bibliotecas. A linguagem do “pensamento Mao
Tsé-tung” tornou-se a linguagem única admissível. Criaram-se personagens
com biografias fictícias, como o bravo soldado Lei Feng, que resumiam
em si, para servir de exemplo, todo o fervor maoista, no seu combate
contra “monstros e demónios”.
No
meio desta guerra civil destinada, do princípio ao fim, à consolidação
do seu poder e à eliminação de todos os seus adversários – até Lin Piao,
o fiel dos fiéis, encontra a morte em 1971 -, perde-se a conta ao
número de vidas desaparecidas e às humilhações sem nome a que são
submetidos todos os que vão sendo declarados, por uma facção ou outra,
inimigos do maoismo, tal como não há limite para as autocríticas, que
florescem a velocidade inédita. Não falta sequer o ocasional
canibalismo, mais trivial durante a Grande Fome, um canibalismo
teoricamente justificado pela luta de classes: “Canibalismo? Era a carne
de um proprietário! A carne de um espião!”, explicava o chefe de um
comité revolucionário.
Quando
Mao morre, em 1976, a festa acaba. Em vida, conseguiu evitar o
aparecimento de um “Khrushchov chinês”, isto é, de alguém que o
condenasse. Condenados, depois, foram alguns dos que o apoiavam. Entre
os muitos julgados, encontrava-se Chiang Ch’ing, a viúva de Mao e figura
eminente do chamado Bando dos Quatro: “Eu era o cão do Presidente.
Mordia quem quer que fosse que ele me mandasse morder”, declarou para a
eternidade.
É
difícil transitar do horror totalitário para a mais pacata vida das
democracias, mas está longe de ser impossível, como disse antes,
encontrar certas tendências totalitárias no movimento woke: a ideia de
que se pode começar tudo como numa página em branco; a multiplicação das
humilhações públicas e das consequentes autocríticas; a recusa da
educação segundo os padrões clássicos; o derrube das estátuas e dos
vestígios do passado; a transformação da linguagem; e por aí adiante.
De
facto, nem sequer é necessário ir tão longe quanto isso. Basta pensar
no nosso manso Portugal de hoje. Querem alguém que seja tanto uma
criatura do seu mestre como Eduardo Cabrita? Trata-se obviamente de uma
ficção inventada por António Costa. Só existe politicamente por isso e
deixará de existir mal o mestre lhe diga para desaparecer. É por isso
que é inútil interrogá-lo sobre o que quer que seja.
Querem
combates contra “monstros e demónios”? É ler, por exemplo, os relatos
que a imprensa divulgou das Jornadas parlamentares do PS em Caminha ou
toda a escola de pensamento que gosta de “malhar na direita”.
Querem
culto da personalidade? Ascenso Simões publicou recentemente um artigo
tão grotesco sobre Costa que me recuso a detalhá-lo aqui, algo do género
“Sigamos o pensamento António Costa a caminho da liberdade, com o sol
dentro do nosso coração”. Mas basta lembrar que foi ele o primeiro
director da campanha de Costa para as eleições de 2015, aquelas que ele
perdeu para Passos Coelho. Foi substituído por causa de uns cartazes
muito maoistas que anunciavam uma brilhante página em branco na qual
tudo podia radiosamente ser escrito e por uns outros em que apareciam
fotografias de indivíduos que narravam os tormentos pelos quais passaram
durante a troika e que eram, de facto, funcionários de uma Junta de
Freguesia lisboeta do PS. E, é claro, Ascenso Simões alçou-se à
celebridade nacional com o seu famoso artigo onde lamentava o pouco
sangue que correra no dia 25 de Abril e onde reclamava a destruição do
Padrão dos Descobrimentos.
Querem
um Lei Feng lusitano? Esperem um bocado, que ainda vai aparecer algum
jovem empresário socialista – chamemos-lhe Valentim Feliciano – que
interpreta as sublimes directivas de Costa na execução do PRR com o
exemplar fervor da juventude que conta, aquela que traz consigo o
futuro, a paz dos povos e a mensagem do “pensamento António Costa”.
Estamos,
é claro, muito longe do horror totalitário, graças a Deus, e não estou a
ver Pedro Nuno Santos e Fernando Medina a acusarem-se um ao outro de
serem o “Khrushchov português”, mas, à nossa escala, não é, no conjunto,
um espectáculo bonito. Enfim, a humanidade é mesmo ligada por
características comuns e, por mais diferentes que sejam os tipos
antropológicos criados pelo totalitarismo e pela democracia, há sempre
umas semelhançazinhas aqui e ali.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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