Nenhuma narrativa pode contornar o fato de que o Brasil tem 2,7% da população mundial, mas concentra 13% das mortes. Editorial do Estadão:
A
mentira tem pernas curtas, mas corre rápido – na era digital, mais
ainda. E, em tempos de pandemia, ela mata. Do mais de meio milhão de
mortes por covid-19 registradas no Brasil, quantas foram causadas pela
guerra do negacionismo contra a ciência?
Um
estudo apresentado à CPI da Pandemia pelo Grupo Alerta – formado por
entidades da sociedade civil, entre elas a Sociedade Brasileira pelo
Progresso da Ciência – estimou que, das cerca de 300 mil mortes nos 12
primeiros meses da pandemia, apenas as medidas não farmacológicas (como
máscaras, distanciamento social, vigilância epidemiológica e testagem)
poderiam ter evitado 120 mil. Na mesma CPI o epidemiologista Pedro
Hallal estimou que, tudo somado, de 500 mil mortes, 400 mil poderiam ter
sido evitadas.
Como
admitem os próprios pesquisadores, são números aproximados. O cálculo
do Alerta, por exemplo, projeta sobre o Brasil a taxa de efetividade na
redução do contágio por medidas não farmacológicas, estimada em 40% por
estudos publicados em revistas científicas como a Science e a Nature. Já
o cálculo de Hallal baseia-se na diferença entre o desempenho do Brasil
e a média mundial. Uma comparação exata precisaria computar variantes
conjunturais e estruturais complexas, que envolvem desde diferenças
demográficas, ambientais, sanitárias e possivelmente étnicas entre os
países, até as estimativas de subnotificação.
Mas
isso não significa, como sugeriu o senador governista Eduardo Girão,
que essas projeções possam ser reduzidas a mera “guerra de narrativas”.
Nenhuma narrativa pode contornar o fato de que o Brasil tem 2,7% da
população mundial, mas concentra 13% das mortes.
No
caso da vacinação, a mensuração é razoavelmente precisa. Só o atraso na
compra das vacinas da Pfizer e da Coronavac – causado exclusivamente
pela negligência amplamente documentada do governo – resultou, pelos
cálculos de Hallal, em 95,5 mil mortes. A estimativa é conservadora:
outras pesquisas sugerem 145 mil mortes pela intempestividade da
vacinação.
Muito
mais difícil é estimar quantas mortes foram causadas pela campanha
ostensiva de desinformação do presidente Jair Bolsonaro. É preciso doses
extras de cautela. Nem todo apoiador de Bolsonaro é negacionista, e
muitos antibolsonaristas são. Mas uma pesquisa publicada pela
Universidade de Cambridge constatou que nas cidades onde Bolsonaro teve
maioria absoluta de votos no primeiro turno, o isolamento social cai
tipicamente entre 10% e 20% por semana a cada pronunciamento
negacionista do presidente. O Instituto de Estudos para Políticas de
Saúde verificou uma aceleração das mortes nos Estados e municípios que
mais votaram em Bolsonaro em 2018.
A
“infodemia” não é apanágio do presidente. O fenômeno é difuso e se
alastrou pelo mundo com tanta ferocidade quanto o vírus. Mas sob
Bolsonaro o governo se transformou numa máquina de disseminação.
Em
diagnóstico sobre a transparência e acesso à informação, a ONG Artigo
19 fez uma série de pedidos de informação ao governo referentes a
políticas como o aplicativo Trate-COV, o “Kit Covid” (de “tratamento
precoce”), o plano de imunização e a disponibilidade de seringas e
cilindros de oxigênio. Dos 20 pedidos, 75% tiveram retorno
insuficiente. Quanto à conformidade das informações prestadas, 85% delas
foram classificadas como “infodemia”, sendo 35% como “informação
desonesta” (contrárias às evidências científicas); 25% como
“desinformação intencional” (informações falsas mescladas a verdadeiras
para se passarem por legítimas); 20% como “apagão” (dados que deveriam
ser públicos, mas foram negados); e 5% como “informação parcial”. Como
conclui a pesquisa, “a não informação e a informação conflitante foram
bases das declarações do governo na condução da política de saúde”.
Aos
poucos os modelos estatísticos aliados a evidências epidemiológicas
depurarão coeficientes mais exatos de quantas vidas foram perdidas pelo
negacionismo do presidente. Desde já, é certo que não foram nem uma nem
duas, mas dezenas de milhares.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário