Para um grande número de cabeças
pensantes, o socialismo é visto como sinónimo de libertação. Não entro
nos detalhes, que ocuparam inúmeros tratados, dessa libertação:
libertação de quê?, e de quem?, e por quem?, e para quem? Artigo do
professor Paulo Tunhas para o Observador:
No outro dia, passou-me pela cabeça uma pergunta que parecerá ociosa:
será que o PS é “socialista”? O nome traz consigo a memória do
marxismo, que vagamente o inspirou nas suas origens, embora de um
marxismo convenientemente amputado de um dos seus elementos
fundamentais. Com efeito, para o marxismo, o socialismo representa uma
etapa histórica que se inicia com a mítica revolução do proletariado e
conduz ao comunismo. Ora, essa parte do vetusto credo não se encontra no
discurso do PS. De um ponto de vista marxista, o PC deveria ser, por
assim dizer, a verdade final do PS. Do ponto de vista do PS, é bom de
ver que não. Em princípio, se é que “socialismo” quer dizer alguma
coisa, fica-se a meio-caminho entre o capitalismo e o comunismo. E já é
muito bom.
Para um grande número de cabeças pensantes, o socialismo é visto como
sinónimo de libertação. Não entro nos detalhes, que ocuparam inúmeros
tratados, dessa libertação: libertação de quê?, e de quem?, e por quem?,
e para quem? Fiquemo-nos por um ponto. Com alguma boa vontade, o
projecto socialista entronca na tradição iluminista, ou, pelo menos, sob
certos aspectos é coerente com ela. Quer dizer que o socialismo é visto
como um meio de desenvolver a autonomia humana, a nossa capacidade de
pensarmos e agirmos em liberdade. Mas, sublinho, apenas sob certos
aspectos. Porque, sob outros, o socialismo faz-se contra o iluminismo.
Com efeito, as críticas da tradição iluminista, que é uma tradição que,
na sua conflitualidade interna, faz todo o sentido, são tanto de direita
quanto de esquerda. Acontece que as críticas de direita são hoje em dia
perfeitamente minoritárias, enquanto que as de esquerda – pense-se na
influente maneira de pensar oriunda de um filósofo como Adorno – se
encontram bem vivas e presentes em diversas correntes de pensamento e
movimentos globais. Não quero fazer aqui o processo da falsa perspicácia
dessas críticas, apenas assinalar a dimensão que tomam hoje em dia.
Consciente ou inconscientemente, tais críticas conduzem à ideia de
revolução, isto é, de uma transformação súbita e radical da organização
da sociedade. O mito da revolução é um mito poderoso e seria pura
ingenuidade pensar que, pelo facto de a palavra não tomar a dianteira
nos discursos políticos, o mito se encontra adormecido. Ele está
acordadíssimo e muito activo. E com ele vem o desejo de uma democracia
dotada de uma maior legitimidade do que a mera “democracia formal”, uma
democracia que transcenda a democracia formal e, pelo caminho, a anule,
ou apenas guarde dela certos aspectos. Vem também com o mito da
revolução a ideia de uma regulação milimétrica de toda a sociedade pelo
Estado. De facto, uma tal regulação transformou-se no único conteúdo
substantivo que a palavra “socialismo” apresenta.
O socialismo, independentemente da vontade de muitos, representa
exclusivamente a doutrina da regulação total da sociedade pelo Estado.
Não há nele, a não ser marginalmente e mais como ornamento discursivo do
que outra coisa, qualquer compromisso com a tradição iluminista da
busca e do desenvolvimento de uma sociedade autónoma composta por
indivíduos autónomos, capazes de deliberarem de acordo com as suas luzes
próprias, como coisa distinta de obedecerem a uma fé cega. Muito pelo
contrário, o socialismo envolve a sociedade no mito, ou numa série de
camadas de mitos que supostamente são dotados de sentido mas que, de
facto, funcionam como encobrimento do real. Dito de outra maneira, e
para falar sobre estas coisas como se falava dantes, são pura ideologia.
O socialismo enquanto projecto dos nossos dias é uma má tradução do
projecto original de libertação iluminista, que se pensou exactamente
contra o regime tutorial que representa, nos nossos dias, o único
conteúdo efectivo do socialismo.
E o PS, no meio disto tudo? É “socialista” ou não? Não estou a ver
António Costa a sonhar em S. Bento com a revolução ou a desenhar planos
para o controle estatal completo dos “meios de produção” para
definitivamente pôr termo à “anarquia do mercado”. Ou a planear a
abolição da “democracia formal” com vista à sua substituição por uma
luminosa democracia “aprofundada”. Mas, deixando António Costa de lado
para não lhe atribuir pensamentos que poderão não ser os dele, conheço
muitos votantes PS que nutrem especial carinho pela ideia de revolução
(tenham com eles uma conversa sobre Cuba, por exemplo) e, abominando a
“anarquia dos mercados”, aplaudem de todo o coração qualquer passo em
direcção ao aprofundamento de um regime tutelar em que o comportamento
individual seja cada vez mais controlado, nos seus mínimos passos, pelo
Estado. E a corrupção e a troca de favores em que o PS se tornou exímio,
bem como a irreprimível convicção da ilegitimidade última de qualquer
governo de direita e a tendência a eliminar tudo o que ponha em causa o
seu poder, não são mais do que a realização possível do sonho de uma
legalidade que transcende a “democracia formal”, alicerçada numa
superioridade moral que por definição absolve os culpados de qualquer
culpa. Querem “ordem” (contra os “mercados”), mas uma ordem que
pessoalmente lhes convenha.
Sim, atendendo aos únicos conteúdos discerníveis da palavra “socialismo” – o PS é socialista.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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