O STF deveria ser a instância pacificadora e estabilizadora da
sociedade, mas são decisões como esta que fazem da corte, hoje, um dos
principais fatores de instabilidade no país. Editorial da
Gazeta do Povo:
Parece inimaginável que, em um país onde vigore o império da lei, um
julgamento seja anulado porque o juiz seguiu estritamente as regras que
regem o processo penal. Mas, no Brasil do Supremo Tribunal Federal, esse
tipo de surrealismo se tornou realidade no dia 27, quando a Segunda
Turma da corte anulou, por três votos a um, a condenação do
ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine. Em março de 2018, o então
juiz federal Sergio Moro havia condenado Bendine a 11 anos de prisão por
corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O TRF4 manteve a condenação,
reduzindo a pena. Agora, o julgamento terá de ser refeito a partir da
fase de alegações finais, graças a uma decisão em que o STF errou na
dose, apegando-se a formalismos que causarão enorme insegurança
jurídica, anulando julgamentos onde não houve nenhum tipo de
irregularidade.
Bendine não era o único réu na ação penal em questão – também foram
julgados o empreiteiro Marcelo Odebrecht; Fernando Ayres da Cunha Santos
Reis, ex-presidente da Odebrecht Ambiental; o doleiro Álvaro Novis; o
publicitário André Vieira da Silva; e Antonio Carlos Vieira da Silva
Junior (o único a ser absolvido de todas as acusações). Deste grupo,
Odebrecht, Ayres e Novis tinham feito acordos de colaboração premiada,
homologados pelos tribunais superiores. Quando chegou o momento das
alegações finais, a última etapa do processo antes da sentença, a defesa
de Bendine pediu para entregá-las depois das alegações dos delatores,
mas Moro negou o pedido.
Ao decidir desta forma, Moro estava amparado no Código de Processo
Penal, que prevê apenas a necessidade de a acusação se manifestar
primeiro, seja oralmente, seja por escrito, com a defesa entregando seus
argumentos por último. Esta fase do processo foi incluída no CPP em
2008 – antes, portanto, da lei das delações premiadas (12.850/13). Mas
também esta lei não instituiu prazos diferentes para alegações finais de
réus delatores e de réus não delatores. Mesmo assim, os advogados de
Bendine recorreram ao Supremo, alegando que tinha havido cerceamento de
defesa, já que eles não teriam como refutar qualquer nova afirmação
feita pelos delatores que pudesse incriminar seu cliente. A argumentação
foi aceita por Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Ficou
sozinho o relator, Edson Fachin.
O que está em jogo aqui é o direito constitucional ao contraditório e
à ampla defesa, consagrados no inciso LV do artigo 5.º da Carta Magna e
sem os quais o devido processo legal dá lugar ao arbítrio. Isso
significa que ninguém pode ser levado diante das autoridades, seja
durante a investigação, seja no julgamento, sem saber por que está sendo
investigado ou quais as acusações que pesam contra si. Todo cidadão
deve ter a chance de se defender, sempre que existir algo a
incriminá-lo, em qualquer fase do processo. A pergunta que os ministros
se propuseram a responder é: o simples fato de réus não colaboradores
terem de fazer suas alegações finais ao mesmo tempo em que réus
colaboradores representa uma agressão a direitos básicos, um cerceamento
de defesa?
Esta situação pode, sim, acontecer. Normalmente, se nas delações há
qualquer elemento que incrimine outros réus no mesmo processo, um
trabalho de acusação bem feito já terá incluído esses fatos na peça
entregue à Justiça, e à qual a defesa tem acesso antes de oferecer as
suas alegações finais, e é por isso que a juíza Gabriela Hardt, que
negou recurso semelhante de Lula no processo do sítio de Atibaia,
afirmou que “defesa do acusado colaborador não é acusação”. Mas também é
perfeitamente possível que, exatamente no momento das alegações finais
em um processo de vários réus, um deles, que tenha feito colaboração
premiada, resolva trazer à luz um fato novo, uma evidência que não havia
sido mencionada até aquele momento e que afete a situação de outro dos
corréus. Em uma situação como esta, é imperativo que o acusado atingido
tenha direito a se defender desta nova alegação, e bons magistrados,
mesmo sob as regras atuais do CPP, saberiam perceber essa situação e
conceder prazos adicionais. Mas, se isso não ocorresse, estamos, sim,
diante de um cerceamento de defesa, circunstância que torna nulo um
julgamento.
É por isso que, buscando salvaguardar o contraditório e a ampla
defesa, faz sentido que o Supremo adote, como uma precaução que impeça
esse tipo de cerceamento de defesa, uma norma que permita a réus não
delatores fazer suas alegações finais apenas depois daquelas oferecidas
pelos réus que fizeram a colaboração premiada. Aqui, não se trata de
legislar indevidamente, mas de proteger garantias constitucionais. Que
essa ordem seja seguida a partir de agora para os processos que estão em
curso, ou para futuros julgamentos, é muito razoável.
Dito isso, qual seria o procedimento a adotar para julgamentos já
encerrados, como foi o caso do recurso de Bendine? Foi aqui que os
ministros se equivocaram. Os magistrados precisariam verificar se, nas
alegações finais dos delatores, efetivamente houve a inserção de novas
informações e evidências que incriminassem outro dos réus, e se esses
elementos foram usados pelo juiz na hora de proferir sua sentença. Em
caso positivo, seria necessário, de fato, refazer o julgamento a partir
das alegações finais; mas, na ausência de tais “novidades”, não haveria
motivo para qualquer nulidade. No entanto, não foi isso o que a Segunda
Turma do STF fez, preferindo julgar a questão de forma abstrata.
Ao anular o julgamento de Bendine sem ter feito a avaliação concreta
do caso, decidindo pela nulidade apenas porque não houve o prazo
adicional para suas alegações finais, sem verificar se ele realmente foi
prejudicado pela decisão de Moro, a Segunda Turma estabeleceu uma
retroatividade puramente formalista na norma que acabou de estabelecer.
Ela é formalista porque se apega apenas à questão dos prazos e
desconsidera totalmente a existência de dano concreto ao réu. Ou seja,
todos os processos já julgados onde esta nova norma não foi adotada
poderão ser anulados, mesmo naqueles casos em que não tenha havido
prejuízo real ao acusado não delator. Afinal, bastará à defesa alegar
apenas que seus clientes não tiveram o prazo adicional para responder a
eventuais novas acusações feitas pelos réus delatores – ainda que não
tenha surgido absolutamente nada de novo que merecesse defesa.
Cármen Lúcia estava certa ao afirmar, durante o julgamento, que esta é
uma situação relativamente nova – ainda que a lei das delações
premiadas seja de 2013 e inúmeros processos tenham sido conduzidos de
acordo com o CPP sem que se cogitasse a possibilidade de cerceamento de
defesa. Portanto, era necessário dar uma resposta, e o Supremo, como
guardião das garantias constitucionais que incluem o contraditório e a
ampla defesa, poderia dá-la, mas a Segunda Turma errou grosseiramente na
dose quando, em vez de apenas estabelecer uma norma para ser seguida
daqui em diante, criou jurisprudência que embasa nulidades mesmo onde
não houve prejuízo algum aos réus.
No caso de Bendine e de vários outros condenados na Lava Jato cujos
julgamentos podem ser refeitos, de pouco adianta afirmar que isso não
significa a inocência dos réus, que o conjunto probatório contra eles
continua sólido o suficiente para embasar a repetição das condenações. O
retrabalho que a Justiça terá na primeira e segunda instâncias é o de
menos. O verdadeiro, o enorme problema é a insegurança jurídica criada
pelos ministros, porque estão prestes a determinar a aplicação deste
novo procedimento de modo retroativo, à medida que os recursos forem
chegando à corte, anulando julgamentos sem nem olhar para as
peculiaridades de cada um deles. O STF deveria ser a instância
pacificadora e estabilizadora da sociedade, mas são decisões como esta
que fazem da corte, hoje, um dos principais fatores de instabilidade no
país.
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