MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

terça-feira, 2 de julho de 2013

Protestos não devem tornar Brasil uma 'nova Turquia', dizem analistas


Manifestações populares têm semelhanças nos dois países.
Mas conjuntura e modo como governos lidam com protestos são diferentes.

Luís Bulcão Do G1 Rio

Manifestantes na praça Taksim, em Istambul, durante protesto em 29 de junho (Foto: Reuters)Manifestantes na praça Taksim, em Istambul,
durante protesto em 29 de junho (Foto: Reuters)
“Acabou o amor, isso aqui vai virar a Turquia.” Há pouco mais de duas semanas, quando o bordão agitador tomou conta das ruas do Brasil invocando um levante de proporções que poucos poderiam associar ao histórico recente do país, os versos poderiam soar presunçosos ou humorísticos. Na borda fumegante das revoltas árabes, a Turquia figurava nos principais noticiários do mundo exibindo grandes manifestações populares violentamente reprimidas pelo governo. As proporções dificilmente se equiparavam. Mas isso mudou.
Em poucos dias, as ruas brasileiras viraram um caldeirão. Houve repressão, algumas com truculência comparável às praticadas pelo governo do premiê turco Recep Tayyip Erdogan. Houve resistência, predominantemente pacífica, assim como a que prevalece na Turquia. E houve descontentamento expresso em cânticos, cartazes e ações que mudaram o cotidiano e a paisagem das grandes cidades, chamando a atenção da imprensa internacional com vitalidade semelhante à das manifestações turcas.
As similaridades de contexto e circunstância vão muito além do formato das manifestações, que bebem nas fontes de outros movimentos, como Occupy Wall Street, dos Estados Unidos, e dos Indignados, da Espanha. O uso da máscara de Guy Fawkes como símbolo de sabotagem é só um dos diversos exemplos que remetem às agitações recentes que pipocaram pelo globo.
Mas Brasil e Turquia têm muito mais em comum. São democracias recentes que passaram por um período de crescimento econômico e de inclusão social. As novas expectativas das populações de ambos países geraram um turbilhão de contestações que chacoalham as duas sociedades. Alguns pontos são intercaláveis. Se os manifestantes turcos temem a influência cada vez mais poderosa de um governo islâmico, os brasileiros contestam propostas de lei de cunho religioso, como o projeto de “cura gay” e o estatuto do nascituro.
Manifestantes são dispersados durante protesto na noite desta terça-feira (25) em Ancara, capital da Turquia (Foto: Reuters)Manifestantes são dispersados durante protesto
no dia 25 em Ancara (Foto: Reuters)
Uma questão pontual na Turquia – o projeto de construção de um shopping center sobre uma das poucas áreas verdes de Istambul – foi o estopim para os protestos naquele país. Assim como a questão do aumento das passagens do transporte coletivo fez eclodir a onda de manifestações no Brasil. Entre as mais contundentes contestações da população turca, está a execução de megaprojetos de construção pelo governo, exatamente do mesmo modo como as obras para a Copa do Mundo fomentaram descontentamento nas ruas brasileiras.
Com tantas similaridades e com a conexão direta cantada nas ruas, as comparações ficaram tentadoras. Mas as associações têm limite.
"O que está em jogo no Brasil não são projetos antagônicos de estado. São diferenças sobre o que a população quer em termos de legislação, mas não é uma disputa pela alma e pelo coração do sistema político brasileiro. Se vai ser um estado laico ou se vai ser um estado religioso. Na Turquia é. Aqui no Brasil, os manifestantes estão questionando a falta de representatividade desse sistema. Na Turquia, é um embate entre governo e oposição pelo projeto de estado. É um jogo muito mais violento, muito mais perigoso. A democracia não corre risco no Brasil”, avalia Maurício Santoro, doutor em Ciência Política.
“A gente se empolga com as comparações. Há realmente muitas coisas em comum, inclusive historicamente entre os dois países. Mas a questão na Turquia está muito mais polarizada, e o governo em uma postura muito mais confrontacionista. Além disso, as próprias reivindicações são muito diferentes. Essas comparações podem ser feitas em um nível muito inicial, apenas”, diz Monique Sochaczewski, doutora em História, Política e Bens Culturais pela FGV-Rio.
Antagonismo
Santoro, que atua como assessor de direitos humanos no escritório brasileiro da Anistia Internacional, desfez as malas no domingo (23). De volta ao Rio no olho do furacão das manifestações brasileiras, havia passado uma semana em Istambul, onde presenciou o clima de divisão.
“Cheguei no domingo (16) a Istambul. Na madrugada anterior, a polícia havia despejado todo mundo que estava acampado na Praça Taksim (epicentro das manifestações turcas). No mesmo dia, houve um comício de simpatizantes do governo, que a mídia divulgava como tendo um milhão de pessoas. Não tinha um milhão. Mas realmente tinha muita gente, talvez 200 mil”, conta.
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Manifestante encara a polícia durante protesto em Ancara (Foto: Adem Altan/AFP)Manifestante encara a polícia durante protesto
em Ancara (Foto: Adem Altan/AFP)
A divisão de posicionamento na Turquia é uma das diferenças mais marcantes em relação aos protestos brasileiros. Metade da população, mais religiosa e concentrada nos bairros pobres das cidades, apoia com veemência o governo de Erdogan, enquanto uma outra metade, de valores mais laicos, ocidentalizados, que ocupa os lugares mais nobres, é quem participa das manifestações de oposição.
“O turista que vai para a Istambul mais europeizada, dos bulevares, dos cafés, dos restaurantes de luxo, vai ter a sensação de que está havendo uma insurreição contra o governo. Se esse mesmo turista só ficar na cidade velha, visitar as mesquitas, os bazares, é um outro país”, conta Santoro.
Monique – autora da tese de doutorado “O Brasil, o Império Otomano e a Sociedade Internacional”, que capta as similaridades e diferenças entre o Brasil imperial e o império islâmico cujo centro era o território atual da Turquia –, coloca a divisão em contexto histórico.
A Turquia, que nasceu com o projeto de laicização e ocidentalização imposto por Kemal Ataturk, que tomou o poder em 1923, passou o século XX intercalando ditaduras e democracias parciais que proibiam os partidos islâmicos. “Durante muito tempo, os religiosos se sentiram lesados por ter um governo secular impondo suas regras”, explica a historiadora.
Manifestantes protestaram contra o aumento do preço das passagens de ônibus, na Avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, nesta segunda- feira. (Foto: Fabio Motta/Estadão Conteúdo)Manifestantes no Centro do Rio de Janeiro
(Foto: Fabio Motta/Estadão Conteúdo)
A mudança só começou a ocorrer no governo de Turgut Ozal, antecessor de Erdogan, que deu início ao processo de readmissão dos partidos islâmicos na arena política turca, mais ou menos na mesma época em que a democracia no Brasil começava a se consolidar. No entanto, somente quando o AKP de Erdogan subiu ao poder, a parte religiosa turca foi considerada parte do jogo político.
“Erdogan foi eleito muito por questões econômicas, com um discurso pró-União Europeia. Mas quando subiu ao poder, foi visto como uma vitória democrática, mostrando que as palavras islâmico, político e democrático cabiam na mesma sentença”, explica Monique.
Segundo a historiadora, o primeiro mandato de Erdogan foi predominantemente democrático e o segundo teve algumas contestações. No entanto, o terceiro mandato já iniciou com uma tensão inversa a que o país estava acostumado. Se antes eram os islâmicos que lutavam por representatividade durante os períodos de imposição laica, agora eram os laicos que temiam a ascensão islâmica e uma consequente privação de direitos ocidentalizados presentes na Turquia.
Tensões religiosas
Apesar de também funcionar como uma similaridade, as questões religiosas no Brasil e na Turquia aparecem de forma fundamentalmente diferentes. “No Brasil, há uma preocupação com essa carga religiosa na política, mas isso é algo marginal dentro do sistema político brasileiro. São partidos que estão crescendo, mas não são os maiores. As bancadas religiosas são grandes, mas não são as maiores. As pessoas estão com medo do que isso representa, mas isso não é o coração do governo e da vida política no Brasil. Na Turquia é. Na Turquia, há um partido islâmico no governo que tem uma crítica feroz a diversos aspectos do estado laico turco. Não significa que esse partido queira transformar a Turquia no Irã, mas, se esse partido tivesse capacidade política para fazer tudo o que quer, seria uma sociedade muito diferente dessa que existe hoje”, avalia Santoro.
Para ele, a “islamização” da política turca se dá de maneira mais sutil do que se dão os projetos de influência religiosa na política brasileira. “O governo turco é muito mais habilidoso politicamente do que o (deputado Marco) Feliciano. O governo não está dizendo que é contra o aborto e que vai banir a lei. Está propondo limitar a lei. Ao invés de oito semanas, vai ser seis. A ideia é ir comendo pelas bordas. O que os manifestantes temem é que esse tipo de mudança gradual, no final de cinco anos, acabe sendo muito significativa”, diz. Entre os projetos de Erdogan, está a tentativa de banir a pílula do dia seguinte e restringir a venda de álcool.
A 'palha nas costas do camelo'
Um outro aspecto de aparente semelhança são as grandes obras que o governo turco está implementando. Enquanto, no Brasil, são citados o valor das obras e a suposta falta de transparência com que foram implementadas, na Turquia é a carga religiosa e simbólica dos projetos que gera descontentamento. “Na Turquia, não é a questão dos recursos. São projetos que vão afetar a vida das pessoas sendo realizados sem a consulta delas. Boa parte desses projetos têm o Império Otomano por trás. Você tem um embate muito grande entre uma identidade mais otomana, islâmica, contra uma identidade mais kemalista (de Kemal Ataturk), mais ocidentalizada”, explica Monique.
Um dos projetos em questão na Turquia é a terceira ponte sobre o estreito de Bósforo, que separa a Istambul europeia da asiática. O governo batizou a ponte no dia que marca a tomada de Constantinopla (atual Istambul), com o nome de Yavuz Sultan Selim, um sultão do Império Otomano que teria massacrado alevitas -um ramo shiita do Islã, que perfaz uma parcela expressiva da população turca. Monique salienta também que os manifestantes turcos contestam o projeto de construção de uma mesquita nos moldes desenhados por Mimar Sinar, o grande arquiteto dos sultões otomanos.
Quando a Turquia deixou de ser um estado muçulmano, boa parte das antigas basílicas bizantinas que haviam sido transformadas em mesquitas foram convertidas em museus, caso de Hagia Sofia, um dos principais pontos turísticos do país. Monique explica que o governo de Erdogan quer reconverter para mesquitas diversos desses espaços. “Lembro das pessoas comentando que isso era uma declaração política. Você já sentia a tensão no ar”, afirma a historiadora, que esteve em abril na Turquia para um seminário sobre grandes cidades em que apresentou um trabalho comparando o Rio de Janeiro a Istambul.
O caso do Parque Gesi foi a gota d’água, ou a palha que quebrou as costas do camelo, como aponta Monique na versão turca para a expressão. O governo queria derrubar uma das poucas áreas verdes em Istambul para construir um shopping center nos moldes de um quartel do império otomano. Assim como no aumento das passagens no Brasil, a questão já foi resolvida e o governo desistiu do plano. Mas o camelo turco já estava sobrecarregado.
“Quando você sai de dentro desse pacto político do estado laico e começa a valorizar uma herança religiosa do Império Otomano, que é uma herança sunita, isso também acaba provocando conflitos do governo com certas minorias religiosas”, salienta Santoro.
Liberdade de expressão e perseguições
Apesar de ter a liberdade expressão consagrada em sua constituição, como lembra Santoro, a lei turca dá margem a interpretações abrangentes. A liberdade de expressão não se aplica, por exemplo, a quem atentar contra a integridade do estado turco. “É um aspecto que pode ser facilmente manipulado pelo governo”, diz. Nesse molde, foram condenados o prêmio Nobel de literatura turco, Orhan Pamuk, por afirmar o genocídio armênio, e o pianista Fazil Say, por críticas ao Islã.
“Ao contrário do Brasil, a mídia turca é instrumento completo de propaganda do governo”, aponta Santoro. Já Monique lembra que um dos grandes símbolos dos manifestantes turcos é um pinguim usando uma máscara de gás. “Isso porque na hora em que o bicho estava pegando e as manifestações estavam em seu auge, a CNN turca transmitia um documentário mostrando pinguins”, explica.
Ambos especialistas também destacam a reação do governo turco às manifestações como grande ponto de divergência ao caso brasileiro. Santoro lembra que muitos manifestantes, jornalistas e advogados de direitos humanos foram presos na Turquia, que já era o país com a maior quantidade de jornalistas presos. “O Erdogan não é o Pinochet, não são 3 mil pessoas presas e sendo torturadas, mas ele está fazendo uma espécie de autoritarismo de baixa intensidade, na qual mira elementos centrais dessas redes de oposição, sobretudo da sociedade civil”, diz.
Em um discurso em que tentou estabelecer uma conexão entre os protestos no Brasil e na Turquia, o primeiro-ministro Erdogan invocou uma teoria segundo a qual os dois países estariam sendo alvos de uma conspiração internacional. “Erdogan não admitiu os manifestantes como parte de uma oposição política legítima. Os termos usados para se referir aos manifestantes são ‘bandidos’, ‘saqueadores’ e ‘bêbados”, afirma Santoro.
Primavera emergente
Mesmo destacando todas as peculiaridades locais, Santoro coloca em perspectiva os protestos de rua que tem chamado a atenção ao redor do mundo. “Assim como no Brasil, quem está chegando no palco político na Turquia é a primeira geração criada na democracia. Mas não é só isso. Também é uma geração que faz parte de um mundo globalizado, que usa a internet, a TV a cabo, e que habita um país muito mais desenvolvido. E isso não acontece só nesses dois países”, afirma. O professor lembra ainda dos protestos contra a violência sexual na Índia e o potencial explosivo de uma geração pós-Apartheid na África do Sul.
“O sistema político não está sabendo lidar com esses jovens, que estão se reinventando, criando métodos de se manifestar, novas maneiras de agir. Isso é muito interessante. Você tem uma nova geração muito ligada à primavera dos países emergentes que está afirmando: ‘o razoável não é o suficiente. A gente quer mais’. Para eles, o que conta não é o fato de que eram países muito pobres e que agora são países com grandes bolsões de classe média. O nível de expectativa e de cobrança é muito maior do que eram para seus pais e avós”, destaca.
Excepcionalismo brasileiro
O recém-criado Brasil das ruas teve semanas intensas, com uma série de respostas ao clamor das ruas: a reversão do aumento das passagens, a rejeição da PEC 37, a aprovação dos royalties do petróleo para a educação e saúde, a sinalização da corrupção como crime hediondo, o debate sobre reforma política, o voto aberto em cassação e a prisão de um deputado federal condenado.
“O que o Brasil conseguiu em duas semanas é muito mais do que qualquer outro desses protestos ao redor do mundo conseguiu em sistemas democráticos. O Occupy Wall Street não conseguiu nada além de colocar o tema da desigualdade em debate nos Estados Unidos, o que não é pouca coisa, mas não em termos práticos. Os Indignados na Espanha e os manifestantes da Grécia não conseguiram reverter as políticas de austeridade. Na Itália, se criou um partido novo, mas agora está passando por uma situação difícil. Em Portugal, não houve nada semelhante”, compara Santoro.
O resultado e a resposta ao descontentamento expresso nas ruas talvez seja a diferença mais marcante da inquietação brasileira. É o fator que permite contrariar o slogan das ruas que se mostrou surpreendentemente fundamentado, mas que, no final das contas, não deve se configurar.
“Isso aqui não vai virar a Turquia porque as instituições da democracia responderam no Brasil. Os políticos, pelo menos alguns políticos, incluindo a presidente da república e alguns governadores de estados-chave, se abriram para o diálogo. Houve uma resposta legislativa. O Congresso fez um ‘pentatlo’ e aprovou uma série de medidas que estavam há tempos paradas nas gavetas e que eram demandas dos manifestantes. A imprensa se posicionou favoravelmente, dando voz às demandas dos manifestantes. Se colocou de maneira simpática ao que as pessoas pediam nas ruas. Isso é muito diferente da Turquia”, diz Santoro.
Monique concorda: “Aqui as ruas assustaram muito. Os governantes estão trabalhando até de madrugada, em dia de jogo. Está sendo um momento muito interessante para se viver no Brasil. Lá, não. O que o governo tem feito, principalmente o primeiro-ministro, é lançar uma teoria conspiratória atrás da outra”, diz.
Nas ruas brasileiras, uma outra resposta, de rima apropriadamente apelativa, já é oferecida. “Não é a Turquia, não é a Grécia. É o Brasil saindo da inércia”.

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