BLOG ORLANDO TAMBOSI
“Equipes de sensibilidade” vasculham livros procurando o que mudar. Vilma Gryzinski:
Madrastas
assassinas, bruxas canibalescas e monstros que representam o medo
diante do despertar sexual juvenil — leia-se Fera e Bela — fazem há
décadas a alegria dos psicanalistas que vasculham os contos de fadas em
busca de códigos mal disfarçados das pulsões que vicejam sob a aparência
de histórias infantis. Outro grupo profissional hoje lê livros com um
olhar diferente: são as “equipes de sensibilidade”, especialistas em
buscar termos e temas ofensivos para os leitores contemporâneos,
criaturas aparentemente frágeis que são capazes de entrar em parafuso
diante de um personagem guloso que é chamado de gordo ou pequenos seres
que preparam o produto exaltado na famosa Fábrica de Chocolate, mas não
podem mais ser tratados como baixinhos.
Os
exemplos fazem parte do universo criado por Roald Dahl, um escritor
infantil adorado na Inglaterra e hoje colocado no canto do castigo pelos
peritos em sensibilidade. As mudanças nos livros de Dahl provocaram
tanto repúdio que até o cauteloso primeiro-ministro Rishi Sunak e a
rainha consorte Camilla, ambos instruídos na arte de não ofender
ninguém, se manifestaram contra. Dahl, filho de noruegueses que foi
piloto na II Guerra, escreveu, em versos, uma divertida versão de
Chapeuzinho Vermelho. Depois de todas as etapas que levam ao confronto
final com o lupino vilão, vem a seguinte parte: “A menininha sorri, com
um olho dá uma piscadinha / E logo saca uma pistola da calcinha / Bem na
cabeça da criatura, ela mirou / Bangue, bangue, bangue, morto ele
ficou”. No final, a brava menina, ou menine, sabe-se lá, se livra da
roupa bobinha com capuz e desfila com um casaco de pele de lobo. Mais
interessante do que as atualizações em que as heroínas viram feministas
discursivas. As crianças adoram, principalmente, a parte da calcinha
(knickers, em inglês da Inglaterra).
Todo
mundo já percebeu a quantidade de elementos politicamente incorretos. O
próprio Dahl antecipou o que viria e, numa conversa com o pintor
Francis Bacon (imaginem a dupla), disse já ter avisado seus editores
que, caso mudassem uma única vírgula de seus textos, nunca mais veriam
uma palavra dele. Evocando suas raízes nórdicas, acrescentou: “E se isso
acontecer depois que eu tiver partido, espero que o poderoso Thor bata
bem forte na cabeça deles com seu Mjöllnir”. O martelo mitológico também
estaria muito ocupado com os editores de Ian Fleming, que lançarão a
série completa de James Bond para comemorar os setenta anos do primeiro
livro. Completa e expurgada: trechos que se referem à homossexualidade
como um “distúrbio renitente” e as referências raciais estão fora. Uma
cena em que o 007 vai a uma boate de striptease no Harlem e vê uma
excitada plateia “resfolegando e grunhindo como porcos no cocho” vira
uma anódina “tensão elétrica” no ar.
Decidir
se livros devem ser tomados ao pé da letra ou entendidos em seu
contexto histórico é debate que resume todas as forças em confronto hoje
nas sociedades ocidentais. “Um pouco de bobagem, aqui e ali, é
apreciada pelos homens mais sábios”, diz Willie Wonka, o protagonista de
A Fantástica Fábrica de Chocolate (Gene Wilder e Johnny Depp no
cinema). Mas não pelas equipes de sensibilidade.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831
Postado há 5 days ago por Orlando Tambosi
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