Semanas
atrás, o psicólogo americano Jonathan Haidt protagonizou uma situação
que diz muito sobre a nossa época. Ele iria apresentar um trabalho na
Society for Personality and Social Psychology e se surpreendeu com uma
exigência feita aos pesquisadores: antes de apresentar seus trabalhos,
eles deveriam enviar à Sociedade uma carta explicando “como o seu
trabalho promove os objetivos de equidade, inclusão e antirracismo”.
Haidt então explicou à presidente da entidade que, como cidadão, poderia
concordar com aqueles objetivos, mas que como cientista seu foco era a
busca da verdade e que ele não iria subordinar seu trabalho a algum tipo
de agenda política. Lembrou que era um erro induzir pesquisadores a uma
atitude monotemática, “ajustando” suas pesquisas para que tivessem
algum foco na “justiça social”, tal como definida pela associação, e que
“ciência e ativismo político raramente se misturam bem”. O tema é
complicado. A Sociedade exigia aquele compromisso por achar que isso
fazia parte de sua luta por “direitos”. Haidt, por sua vez, achou o
contrário: que impunha a ele e a outras pessoas subordinar sua atividade
intelectual a uma agenda política. Coisa com a qual ele não concordava e
que, portanto, também feria seus direitos. E por isso terminou por
renunciar à Sociedade.
Pensava
sobre essas coisas enquanto lia o saboroso livro de Adam Gopnik, A
Thousand Small Sanities, contando a aventura do liberalismo e sua
conquista, degrau a degrau, da sociedade de direitos. Gopnik é um
liberal no sentido americano. Entende o conceito para além da garantia
das chamadas “liberdades negativas”. Daí sua ênfase da história dos
sindicatos ingleses e dos direitos sociais; de Mary Wollstonecraf e seu
clássico sobre a emancipação feminina; da jornada gloriosa de William
Wilberforce pelo fim da escravidão, na Inglaterra. Isso tudo até a saga
de Martin Luther King e as recentes conquistas do movimento gay pela
igualdade civil. A história descrita por Gopnik é conhecida e
incorporada ao melhor da tradição liberal.
Ninguém
seriamente diverge do primado da igualdade de direitos e seu passo
seguinte, envolvendo educação básica e um mínimo social garantido, como
sugeriu Hayek. A pergunta relevante dizia respeito ao contraste entre
essa história de liberdades e aquela atitude impositiva e um tanto
ranzinza que levou ao protesto de Jonathan Haidt. Algo bem exemplificado
na onda de “cancelamentos” de professores universitários, nos Estados
Unidos, bem documentada pela Foundation for Individual Rights in
Education (Fire), identificando 537 casos nos últimos sete anos. Coisas
que vão desde a proibição de estudos com resultados “politicamente
incorretos”, passando pelo veto ao filme Othello, de 1965, com um ator
usando blackface, até a demissão de um professor pela simples ida a um
ato político conservador.
O
que isso nos diz sobre o liberalismo atual? Em que momento os
movimentos de direitos e igualdade passaram, eles mesmos, a exigir
enquadramento, restrições à liberdade de expressão, subordinação da vida
acadêmica à ideologia? Mark Lilla talvez seja o autor que mais tem se
dedicado a essa análise. “O liberalismo americano caiu em uma espécie de
pânico moral sobre identidade racial, de gênero e sexual”, disse ele.
Francis Fukuyama definiu o tema como um tipo novo de iliberalismo,
pautado pela sobreposição das identidades de grupo à autonomia
individual, e aversão aos valores do pluralismo que estão na base das
democracias liberais.
A
obsessão identitária alimenta sua contraface: a reação conservadora.
Ela vem dos grupos “sem retórica”, excluídos do arco convencional da
diversidade. Os culturalmente “atrasados”. O redneck americano. O
cafona, o evangélico, o chucro, no triste debate brasileiro. Pesquisa
recente mostrou que é exatamente a classe C o bastião do voto
conservador no Brasil atual. Nos Estados Unidos, a socióloga Arlie
Hochschild, de Berkeley, foi pesquisar o sentimento dessas pessoas, na
América profunda, e chegou a uma imagem icônica: “É como se elas
estivessem numa fila, esperando pacientemente chegar a sua vez, no sonho
americano, e de repente aparece um monte de gente furando a fila,
passando na frente”. Vem daí boa parte do atual suporte aos novos
populismos, e o recado de Hochschild é claro: é preciso compreender o
incômodo das pessoas, ao invés de atirar pedras e satisfazer o próprio
ego.
É
precisamente aí que reside o mal-estar do liberalismo atual. Temos
algum consenso em torno dos chamados direitos de primeira geração.
Liberdades fundamentais e uma base de oportunidades para todos. Consenso
frágil, é verdade, quando se observa o que anda acontecendo com o tema
das liberdades no Brasil de hoje. O ponto é que nos temas difusos das
guerras culturais, onde reina, talvez como sintoma, a atual obsessão
identitária, não há sequer pretensão de consenso. Há conflito e uma
contínua fragmentação do tecido social, e esse era o sentido da crítica
de Lilla. Pautas que vão longe da vocação universalista dos temas
clássicos do liberalismo. Uma coisa é exigir que ninguém seja
discriminado, na sociedade, por razões de gênero ou raça. Outra
inteiramente distinta é ajustar permanentemente a estrutura de direitos
em favor de um ou outro grupo, ou subordinar a vida intelectual, quando
não a própria linguagem, à subjetividade sempre em expansão desse ou
daquele grupo em uma sociedade diversa.
O
mesmo vale para o novo conservadorismo cultural. Todos parecem esperar
do liberalismo algo que põe em xeque sua própria natureza. A ideia que
tomou forma, na modernidade, quando as ideias passaram a voar e a
verdade se partiu em mil pedaços: de que nosso destino era viver em
sociedades abertas e que não caberia mais ao Estado oferecer uma ética
abrangente, uma estética ou um sentido existencial à vida humana.
Parecemos agora enredados na ilusão de um consenso perdido. Sobre o
papel do homem e da mulher, sobre o tipo de humor a praticar, pronomes e
imagens públicas a aceitar, em um universo potencialmente infinito.
Talvez seja a proximidade a que subitamente fomos jogados, na arena
digital, e sua falsa impressão de que formamos uma comunidade. E quem
sabe mesmo por isso seja a hora de lembrar por que o liberalismo foi
inventado: porque um dia descobrimos, a duras penas, que um consenso
desse tipo era impossível, a não ser sob doses cavalares de
autoritarismo. E por isso renunciamos. Por isso decidimos agir com um
saudável ceticismo. Decidimos limitar o poder, cultivar a tolerância e
negar ao Estado qualquer prerrogativa sobre a verdade.
Algo
bem expresso naquela frase famosa colocada pelos pais fundadores da
República americana na base de sua Carta de Direitos, assegurando a
todos não o direito à felicidade, mas o direito à “busca pela
felicidade”. Ideia que combina uma promessa e uma renúncia, e que
valeria hoje relembrar.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812
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