Prepara-se um imenso amanhã repleto de grilos crocantes, autocarros em greve, frio, cobertores, clausuras a pretextos sortidos. E escuridão. Entramos num século sem luzes, figuradas e literais. A crônica semanal de Alberto Gonçalves para o Observador:
Açúcar?
Mata. Sal? Esfola. Hidratos? Engordam. Carnes vermelhas? São um perigo.
Gorduras? Nem a brincar. Peixe? Não alimenta. Marisco? Provoca gota.
Lacticínios? Avariam o fígado. Vegetarianismo? Uma moda inconsequente.
Removidos os venenos citados, a alimentação fica entregue à bicharada.
Não falo de frangos e perus, cuja criação evidentemente favorece as
alterações climáticas. Falo de insectos.
Falo
de insectos porque não se tem falado o suficiente, porque amanhã se
celebra o Dia Mundial do Insecto Comestível e porque no próximo dia 27
se realiza, em Leça da Palmeira, a 4ª edição das comemorações do Dia
Mundial do Insecto Comestível, a cargo de uma entidade chamada Portugal
Insect. Parece-me grave que semelhante iniciativa não convoque a atenção
suscitada por um Mundial da bola ou assim. Na página de Facebook da
Portugal Insect, a notícia do evento tinha, à hora a que escrevo, 32
“gostos” e 11 comentários, na maioria negativos e enojados. Para cúmulo,
apesar de algumas reportagens televisivas, os “media” não ajudam à
divulgação. Eu ajudo.
O
programa de dia 27, a decorrer no Clube de Vela Atlântico, é o
seguinte: 9.30: Abertura; 10.00: Apresentação da Portugal Insect e do
sector; 10.15: Sessão Técnica – Produção de insectos; 11.15: Coffee
Break; 11.45: Workshop – Utilização de insectos em produtos alimentares;
13.00: Almoço; 14.00: Sessão técnica – Transformação e utilização de
insectos; 14.30: Perspectivas internacionais do sector dos insectos como
fonte nutricional; 15.00: Mesa redonda; 16.00: Encerramento. O preço da
inscrição são meros 120 euros, leia-se a doação do dr. Costa com folga
para uns rebuçados de gafanhoto que, lá em casa, farão a alegria da
petizada. O cartaz da coisa é ilustrado com a imagem do que julguei
serem larvas. Investiguei e descobri que afinal são tenébrios. O que são
tenébrios? Investiguei outra vez: são larvas.
Provavelmente,
os afortunados participantes do evento almoçarão aquilo que surge no
queijo ou no bife quando os esquecemos à temperatura ambiente. E o
melhor de tudo é que começam por aí a vender-nos a ideia de que, em
breve, boa parte da humanidade almoçará o mesmo. Nem o proverbial atraso
português impediu a cantina do Politécnico de Lisboa de servir
“chocolates” e “hambúrgueres” confeccionados a partir de familiares da
lombriga. E, pelo mundo civilizado afora, comer larvas e grilos ameaça
tornar-se banal. Ou pelo menos garantem-nos que sim, a fim de nos
convencer. As Nações Unidas, que nunca falham, andam desde 2013 a
promover essa alternativa “sustentável” e “nutritiva”.
Por
mim, nem por um instante duvido que os insectos sejam a comida do
futuro, até porque no passado é preciso recuar uns séculos, quiçá uns
milénios, para encontrar europeus que fizessem disso, digamos, o prato
principal. Falta de hábito, um óptimo hábito. Por pura ignorância,
sempre que reclamamos de uma mosca na sopa pretendemos sugerir que a
criatura está ali a mais. Não tarda, reclamaremos que há apenas uma
mosca na sopa. Basta que a mensagem da ONU se entranhe, ou que a
escassez e o preço dos alimentos tradicionais os tornem inalcançáveis,
de acordo com o que acontecer primeiro.
A
bem do planeta, espero que, o que quer que aconteça, aconteça depressa.
E não me refiro só aos alimentos. É óbvio que, nos diversos aspectos da
vida corrente, existe uma abençoada inclinação para remover as massas
brutas do caminho da perdição em que nos enfiáramos. Felizmente, nos
lugares de decisão temos elites por definição esclarecidas que sabem o
que nos convém e que, com maior ou menor gentileza, nos orientam para
esse radioso destino. Após milhares de instrutivas viagens em jactos
privados e inúmeros banquetes reflexivos, que o corpinho mimoso do eng.
Guterres não se fez à custa de tenébrios nem se mantém a pedalar
velocípedes, as elites concluíram: não se admite que, em 2022, ainda
haja gente a deglutir panados de porco, a deslocar-se em automóvel
particular, a ter automóvel particular, a aquecer ou a resfriar a casa
conforme lhe apetece, a acender lâmpadas ao calhas, a fazer compras aos
domingos e a comprar o que, dentro do possível, escolhe. A sorte é que a
probabilidade de tal bandalheira continuar em 2023 é baixa.
Não
é à toa que os supermercados desataram a fechar a cadeado as latas de
conserva, um luxo que arruína os oceanos. A tendência Outono-Inverno já
se prevê amiga do ambiente. Daí em diante, prepara-se um imenso amanhã
repleto de grilos crocantes, autocarros em greve, bicicletas, frio,
cobertores, clausuras a pretextos sortidos. E escuridão. Graças à
lucidez dos senhores que mandam, entrámos num século sem luzes,
figuradas e literais. Até que enfim: a Terra não podia esperar.
Esperamos nós, sentados no breu da sala gelada a petiscar larvas. Um
dia, as larvas petiscam-nos de volta. Todos acabamos entre bichos.
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