Ver o mundo em preto e branco é caminho rápido para ser cruel sem perceber. João Pereira Coutinho via FSP:
Ver o mundo em preto e branco nunca fez bem a ninguém. Tempos atrás, escrevi nesta Folha que existe um estranho esquecimento nas discussões atuais sobre racismo: os judeus.
O pretexto era o livro de David Baddiel, "Jews Don't Count", que arrisca várias hipóteses para esse esquecimento. O antissemitismo é religioso, dizem uns. O antissemitismo é uma forma de antissionismo, dizem outros.
Fracas
explicações, diz Baddiel. Há judeus ateus. Há judeus que marcham contra
o Estado de Israel. O antissemita não discrimina na hora de odiar ou
matar.
Para
o autor, a resistência em incluir os judeus nas vítimas de racismo está
na forma estreita como o próprio racismo é discutido hoje em dia: uma espécie de clube exclusivo onde só os negros têm voz.
Nada
mais falso. O racismo existe onde existe um preconceito contra uma
"raça" que se considera inferior ou sub-humana. E existem dois crimes
nessa atitude: um crime científico, no uso da palavra "raça", e um crime
moral, na discriminação exercida sobre minorias.
Nesse sentido, negros, indígenas, ciganos, judeus, albinos, uigures —todos podem ser vítimas de racismo. A cor da pele é um detalhe quando falamos de submissão e poder.
Esse foi o primeiro erro de Whoopi Goldberg.
Aconteceu em programa de TV, quando se discutia a proibição da graphic
novel "Maus" numa escola do Tennessee: o Holocausto não foi por racismo,
afirmou a atriz. Foi pura desumanidade do homem sobre o homem —do homem
branco sobre o homem branco, entenda-se.
Horas depois, a atriz pediu desculpas por sua ignorância. Parece que o racismo também explica o Holocausto, no fim das contas.
Mas
existe um segundo erro na teoria de Whoopi Goldberg, que ganha
contornos bem irônicos: se existe um momento em que o antissemitismo
ganhou dimensão genocida por motivos raciais foi precisamente na
Alemanha nazista.
Nem
sempre foi assim. Quando olhamos para a milenar história do
antijudaísmo (talvez essa palavra seja mais correta que antissemitismo),
é possível encontrar diferentes camadas de ódio, cada uma com sua
natureza.
O
antijudaísmo romano era essencialmente político e nascia da vontade do
império em subjugar uma minoria no Oriente Médio. A destruição do
Segundo Templo em 70 d.C., como resposta às rebeliões judaicas, e a
consequente dispersão dos judeus pelo império romano marca o fim desse
antijudaísmo político na antiguidade.
Segue-se um antijudaísmo religioso, em que os judeus são vistos como assassinos de Jesus. Na Europa cristã, e sobretudo com a Reforma Protestante do século 16, as matanças antijudaicas são justificadas à luz do dogma religioso.
Mas
é no século 19 que o antijudaísmo racial desponta como marca
distintiva: a pureza da raça rapidamente contamina o nacionalismo
alemão. Com os nazistas, essa doença atinge paroxismos de repulsa e
destruição.
No seu "Mein Kampf",
Hitler é explícito: "sempre que os arianos misturam o seu sangue com o
de povos inferiores, o resultado é a extinção do elemento civilizador".
A
título de exemplo, o grotesco Adolfo citava a colonização da América
Latina por contraposição à América do Norte. Na primeira, os
colonizadores foram portugueses e espanhóis, ou seja, raças inferiores
que não hesitaram em misturar o seu sangue com raças ainda mais
inferiores.
Na
América do Norte, o elemento germânico sempre foi avesso a essas
misturas. Razão pela qual era possível encontrar uma civilização
desenvolvida a norte, mas não a sul.
A
conclusão prática desse "raciocínio" (digamos assim) dispensa grandes
comentários. Exceto para lembrar que a "solução final para a questão
judaica", decidida em Wannsee
há 80 anos, mostra bem como a prioridade em 1942 não era apenas vencer a
guerra (objetivo que se revelava cada vez mais difícil, perante a tenaz
soviética e americana que se fechava sobre Berlim).
Era
mobilizar os recursos necessários para exterminar uma "raça" —tarefa a
que os soldados do Reich se dedicaram até a rendição, e mesmo depois
dela.
Ver
o mundo em preto e branco nunca fez bem a ninguém, repito. Porque esse é
o caminho mais rápido para você ser cruel sem perceber que é.
Whoopi Goldberg, suspensa do canal ABC (um absurdo exagero), aprendeu isso a duras penas. E você?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário