Putin, um verdadeiro patriota? Eis a resposta do escritor Mario Vargas Llosa, em sua coluna para o Estadão:
Vladimir Putin,
o homem que está a ponto de afundar a Europa em uma guerra de
imprevisíveis resultados, não é um intelectual nem um homem afeito a
livros: a educação que recebeu é a de um funcionário da polícia política
da URSS, a KGB. Esteve algum tempo na Alemanha Oriental, um país que,
dizia-se, era o mais próspero entre os que conformavam a URSS. Uma
fantasia, pois quando saiu da esfera soviética, descobriu-se que o país
era bastante atrasado. Passaram-se vários anos desde que se reintegrou à
Alemanha e ainda é pobre em relação à Alemanha Ocidental.
Boris
Yeltsin, um democrata bêbado e desajeitado, cometeu o erro de promover
Putin e levá-lo ao poder, algo que lhe deu muita popularidade quando a Rússia
parecia a ponto de romper-se na desordem descomunal de que padecia,
pois ele colocou ordem naquele caos e os russos (não todos) acreditaram
que, com ele no poder, adviria um tempo de paz e prosperidade para o
país.
COMPADRIO
A
Rússia deixou de ser comunista desde então, mas não é democrática nem
liberal, e pratica um capitalismo de compadres, onde, desde que
permaneça calado e siga passo a passo as disposições do poder, alguém
pode se fazer rico e até bilionário. Mas não tente visitar o bairro de
Moscou onde vivem os poderosos aliados de Putin, pois uma barreira
policial o impede, como tive oportunidade de comprovar há três anos,
quando estive por lá.
Os
russos que admiram Putin acreditam em tudo o que ele diz - já não são
muito numerosos, como mostra o fenômeno Alexei Navalni, a quem o poder
tentou assassinar e o mantém agora em uma prisão - e muitos deles
compartilham de sua crença de que a Ucrânia
é parte da Rússia dos czares, pois os mais antigos nasceram e estão
enterrados lá, como se as orografias nacionais se mantivessem intactas
ao correr dos séculos, sobretudo no continente europeu, e não tivessem
mudado centenas de vezes de conformação e natureza ao longo de sua
história.
Putin
já recuperou para a Rússia a Península da Crimeia, uma parte da
Ucrânia. A operação militar deixou muitos mortos, já esquecidos. Mas a
solicitação de ingresso à Otan do novo governo ucraniano incitou a
indignação dos dirigentes russos que, prontamente, colocaram 100 mil
militares na fronteira oriental deste país. E, em cartas aos EUA e à Otan
- a defesa do Ocidente -, pediram garantias, ou seja, uma proibição
expressa de que os países fronteiriços à Rússia se incorporem à aliança
atlântica, algo que, obviamente, é incompatível com a liberdade de cada
país de ser membro - sobretudo tratando de defender sua independência -
de qualquer organização que exista e esteja garantida pelos tratados
internacionais.
Estourará
uma guerra que coloque em perigo a paz do mundo e poderia se degenerar
em uma confrontação atômica, que, após a pandemia do coronavírus,
deixaria o restante do planeta em estado de decadência ou acabaria com
ele? Eu, pessoalmente, não creio, ainda que, com certeza, bato na
madeira, pois tudo poderia ocorrer.
Imagino
que Putin se acostumou a colocar o mundo de joelhos com seus desplantes
e ameaças e, pela primeira vez, adverte o restante da comunidade, ou
seja o Ocidente, que reagirá às suas provocações com advertências muito
concretas: de castigá-lo com a interrupção do fornecimento de gás para a
Europa.
DESCONTENTAMENTO
Esta
ameaça, aliás, não parece deixar tão contentes os países que se veriam
mais afetados, como Alemanha, onde já se registraram alguns respingos
adversos dos novos dirigentes, e até a França, onde o presidente
Emmanuel Macron trata de iniciar um diálogo com o russo, algo que não é
tão fácil nem surte resultados tão imediatos. E o dirigente húngaro,
Viktor Orban, se apressou em ir a Moscou proclamar sua solidariedade com
os russos, durante uma conversa com Putin, que o declarou “o melhor
amigo que temos no mundo ocidental”.
Em
todo caso, é óbvio que as ameaças dos EUA e dos países da Otan não
recebem respaldo unânime nem igualmente enérgico de todos que seriam
vítimas de uma agressão russa e de Putin, em seu afã de reconstruir o
que foi o império soviético nos tempos do stalinismo. Essa possível
censura dos países do Ocidente, que elevaria o custo do fornecimento de
energia para vários deles - como Espanha, por exemplo -, é uma fraqueza
que poderia animar o dirigente russo a cumprir sua ameaça, apesar das
enérgicas declarações dos EUA e da Otan de que, se a Rússia romper com a
paz e invadir a Ucrânia, receberia um castigo sem precedentes que
poderia quebrar sua economia e seria afrontada por uma ofensiva militar.
O
que ocorrerá, finalmente? Minha impressão é que, pressionado a agir,
Putin calculará que os riscos de uma ofensiva geral do Ocidente contra a
Rússia são elevados demais e, com efeito, isso poderia significar o fim
da popularidade com que, de maneira relativa, ele tem contado até agora
na Rússia, e a oposição, que cresceu nesses últimos anos, poderia
desalojá-lo do poder - e talvez isso o obrigue a se conter. Tudo isso é
mera especulação.
Também
poderia suceder que, advertido para as potenciais diferenças que
existem no Ocidente entre os EUA e os países vítimas de um corte no
fornecimento de energia, Putin sinta-se com forças para invadir a
Ucrânia, haja o que houver. Parece-me que esta opção é mais difícil, mas
não impossível. Os “homens fortes” no poder, como ele, podem às vezes
fazer apostas arriscadas.
Há
que se fazer todo o possível - e o impossível - para que esta
circunstância não escancare que ninguém sabe o poderia significar uma
guerra na atualidade, com os gigantescos esconderijos de bombas e
artilharia atômica que possuem os países que se enfrentariam.
Fundamentalmente dois, Rússia e EUA. O restante desempenharia
simplesmente o papel de recrutas e vítimas, já que nenhum deles - e as
bravatas de Boris Johnson menos que tudo - está em condições de resistir
a uma agressão atômica.
IMPÉRIO SOVIÉTICO
Estou
bastante seguro de que nada desse final pessimista se concretizará. E o
antigo membro da KGB, onde ensinaram a Putin o judô que lhe permite,
para publicidade, derrubar facilmente seus adversários diante das
câmeras, conterá neste momento sua ânsia de ressuscitar o império
soviético e o sistema ocidental respirará mais tranquilo após a bagunça
destes dias.
Porque
uma terceira guerra mundial não seria limitada nem prescindiria do uso
dessas armas, que poderiam fazer desaparecer um milhão de pessoas (ou
muito mais) com um só disparo. No passado, esse entretenimento dos
poderosos era possível porque, mesmo com os erros, a matança era
controlável. Agora já não é assim. Um descuido, por mínimo que seja,
pode provocar o fim do mundo.
Isso
significa que o restante do planeta deve se curvar, retroceder e acatar
sem resistir os caprichos do “patriota” que governa Moscou? Tampouco
creio nisso. Parece-me que chega-se a um limite, e o Ocidente não pode
fazer mais concessões ao dirigente russo, pois isso seria renunciar às
coisas mais admiráveis conquistadas, entre elas a liberdade e a
democracia, que dignificaram a vida de milhões de seres humanos.
Pensamos que, em meio ao caos que viveu ao fim do império, a Rússia
também as obteria. Era outra fantasia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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