A propaganda russa faz-me lembrar o seguinte ditado soviético: “Não irá haver guerra, mas terá lugar uma luta tão intensa pela paz que não ficará pedra sobre pedra”. José Milhazes para o Observador:
Vladimir
Putin deverá sentir-se um dirigente feliz, um autocrata que impõe medos
dentro e fora do seu país, que obrigou todo o mundo a ouvir a sua voz
de trovão.
Diariamente,
ele recebe um ou vários telefonemas de dirigentes de outros países a
propósito do alargamento da NATO, da situação em torno da Ucrânia,
sucedem-se as visitas a Moscovo de presidentes e primeiros-ministros
para se encontrarem com ele e abordarem os mesmos temas. Nunca antes
Putin se sentiu um líder tão temido (recuso-me a empregar o adjectivo
respeitado, pois ele não se adequa à política do autocrata russo) como
actualmente. A sua política de “pressão permanente” está a surtir
efeito, criando uma atmosfera de histeria na Rússia e no Ocidente.
Não
faltam na Rússia cabeças delirantes que apelam não só a uma invasão da
Ucrânia e muito mais. Margarita Simonyan, chefe do canal propagandístico
Russia Today, perguntou, em nome dos seus seguidores nas redes sociais,
a Serguei Lavrov, dirigente da diplomacia, quando é que a Rússia irá
“fazer Washington ir pelos ares?”. O ministro russo respondeu,
utilizando a fórmula oficial: “Não queremos guerra. Mas também não
permitiremos que espezinhem os nossos interesses, que os ignorem”.
Serguei
Soloviov, que dirige um dos programas onde mais se ataca a Ucrânia na
televisão russa, não quer ficar atrás no discurso e, durante uma
discussão sobre um possível ataque da NATO contra Kalininegrado, grita:
“Nós abriremos imediatamente fogo e nada lá restará. Golpe imediato.
Putin disse uma vez que atacaremos tanto os quarteis-generais como os
lugares onde são tomadas semelhantes decisões”.
O
líder palhaço-nacionalista, Vladimir Jirinovskii, que diz aquilo que
realmente vai na cabeça de alguns dirigentes russos, afirma em mais um
programa televisivo: “Como resultado das acções militares, passaremos a
ser a única superpotência no mundo. Só Moscovo ditará as condições…
Utilizaremos todos os nossos armamentos, mesmo aqueles que vocês não
conhecem… Arderá metade da Europa, metade da América… Nós também iremos
sofrer, mas será o vosso fim… A destruição das vossas forças armadas, do
sistema financeiro, da vossa direcção. Não existirá qualquer Ucrânia.
Esqueçam essa palavra… Vamos ter todo o mundo ajoelhado a nossos pés… É
preciso fazer isso imediatamente…”.
A
propaganda russa faz-me lembrar o seguinte ditado soviético: “Não irá
haver guerra, mas terá lugar uma luta tão intensa pela paz que não
ficará pedra sobre pedra”.
Deste
lado saem também expressões semelhantes da boca de alguns políticos,
comentadores e jornalistas, pois nesta crise não há santos e pecadores.
Foram
cometidos muitos erros de parte a parte e devem ser emendados. Nesse
sentido, seria importante dar ouvidos às vozes sensatas. Uma delas é o
general-coronel na reserva Leonid Ivashov, que, entre 1996 e 2001,
esteve à frente da Direcção Principal de Cooperação Militar
Internacional do Ministério da Defesa da Rússia. Trata-se de um militar
nacionalista, o que mostra que não é só a fraca oposição liberal que
critica a política de Putin face à Ucrânia e à NATO.
Em
nome da União dos Oficiais da Rússia, organização que reúne militares
na reserva, Ivashov, dirigiu a Vladimir Putin uma dramática mensagem.
Peço
desculpa ao leitor, mas vou traduzi-la integralmente para que não seja
acusado de má-fé. Esta organização afirma: “Hoje, a humanidade vive na
expectativa de uma guerra. E a guerra significa inevitáveis vítimas
humanas, destruições, sofrimentos de um grande número de pessoas, o fim
do modo de vida normal, a destruição de sistemas vitais de funcionamento
de Estados e povos. Uma guerra grande é uma enorme tragédia e um crime
grave. Acontece que no centro desta ameaçadora catástrofe está a Rússia.
E pela primeira vez na sua história.
Antes,
a Rússia (URSS) conduziu guerras inevitáveis (justas) e, guerra geral,
quando não havia outra saída, quando estavam sob ameaça os interesses
vitais do Estado e da sociedade.
E
o que é que hoje ameaça a existência da própria Rússia, há semelhantes
ameaças? Pode-se afirmar que, realmente, as ameaças estão à vista: o
país está no limiar de terminar a sua história. Todas as esferas
vitalmente importantes, incluindo a demografia, degradam-se
constantemente e os ritmos de redução da população batem recordes
mundiais. E a degradação tem um carácter sistémico e, em qualquer
sistema complexo, a destruição de um dos elementos pode conduzir à queda
de todo o sistema.
E,
pensamos nós, esta é a principal ameaça para a Federação da Rússia. Mas
esta ameaça tem uma natureza interna, que parte do modelo de Estado, da
qualidade do poder e da situação da sociedade.
E
as causas do seu aparecimento são internas: a inviabilidade do modelo
estatal, a total incapacidade e falta de profissionalismo do sistema de
poder e administração, a passividade e desorganização da sociedade.
Nenhum país viverá muito nestas condições.
No
que respeita às ameaças externas, elas estão incondicionalmente
presentes. Mas, segundo peritagens nossas, elas, actualmente, não são
críticas, não ameaçam directamente o Estado da Rússia, os seus
interesses vitalmente importantes. Em geral, conserva-se a estabilidade
estratégica, as armas nucleares estão seguras, os contingentes da NATO
não aumentam, não há sinais de actividade ameaçadora.
Por
isso, a situação crescente de tensão em torno da Ucrânia tem, antes de
tudo, um carácter artificial, mesquinho para algumas formas internas,
nomeadamente da Rússia. Como resultado da desintegração da URSS, em que a
Rússia (Ieltsin) teve uma participação decisiva, a Ucrânia tornou-se um
Estado independente, membro da ONU, e, em conformidade com o artigo Nº
51 da Carta da ONU, goza do direito à defesa individual e colectiva. A
direcção da Federação da Rússia não reconheceu até agora os resultados
do referendo sobre a independência da República Popular de Lugansk e da
República Popular de Donetsk, nomeadamente no processo do Processo de
Transição de Minsk, sublinhou a pertença desses territórios e da
população à Ucrânia. Também nada se disse a alto nível sobre o desejo de
manter relações normais com Kiev, não destacando relações especiais com
Donetsk e Lugansk.
A
questão do genocídio por parte de Kiev nas regiões do sudeste não foi
levantada nem na ONU, nem na OSCE. Claro que para que a Ucrânia se
mantivesse um vizinho amigo da Rússia, seria necessário demonstrar-lhe o
poder atrativo do modelo russo de Estado e de sistema de poder.
Mas
a Rússia não fez isso, o seu modelo de desenvolvimento e o mecanismo
político de cooperação internacional afastam praticamente todos os
vizinhos, e não só. A inclusão da Crimeia e de Sebastopol pela Rússia e o
não reconhecimento disso pela comunidade internacional (ou seja, a
esmagadora maioria dos Estados do mundo continua a considerá-los parte
da Ucrânia) mostra claramente o falhanço da política externa russa e a
falta de atracção da interna.
As
tentativas, através de ultimatos e ameaças de emprego da força, de
obrigar a “amar” a Federação da Rússia e os seus dirigentes não têm
sentido e são extramente perigosas.
O
emprego da força militar contra a Ucrânia, primeiro, põe em causa a
existência da Rússia como Estado; segundo, fará para sempre dos russos e
ucranianos inimigos mortais. Terceiro, haverá de ambos os lados
milhares (dezenas de milhares) de jovens mortos, o que se reflectirá
incondicionalmente na nossa futura situação demográfica nos nossos
países em extinção. No campo de batalha, se tal acontecer, as tropas
russas enfrentarão não só militares ucranianos, entre os quais haverá
muitos jovens russos, mas também soldados e armamentos de muitos países
da NATO e os Estados membros da Aliança deverão declarar guerra à
Rússia.
Além
disso, a Rússia será evidentemente incluída na categoria dos países que
ameaçam a paz e a segurança internacional, sofrerá sanções
pesadíssimas, transformar-se-á num pária da comunidade internacional, e,
provavelmente, ver-se-á privada do estatuto de Estado independente.
O Presidente, o Governo e o Ministério da Defesa não serão tão tontos para não compreenderem essas consequências”.
Isto
deveria fazer pensar os analistas políticos que justificam a limitação
da soberania da Ucrânia e a invasão deste país pela Rússia. Vladimir
Putin, ao apresentar o ultimato aos Estados Unidos e NATO, como que
subiu a uma árvore muito alta e agora não sabe como descer. Esperemos
que desça de forma a não provocar estragos ao seu país e ao mundo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário