O amour libre pregado pelos franceses no pós-guerra focava exclusivamente no prazer, contra toda motivação de ordem econômica ou social. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Como vimos, o casamento gay pode ser reivindicado por europeus hedonistas e norte-americanos puritanos sob chaves opostas. O mesmo se dá com a liberdade sexual da mulher.
Nos
Estados Unidos, a feminista para de trabalhar como os homens e passa a
vender o seu sexo (sugar baby) ou sua beleza (Only fans). Num caso e
noutro, o prazer está fora de questão. Prostitutas transam porque dá
dinheiro, e uma jovem cam girl pode permanecer virgem em casa, salvando o
mundo da pandemia. Para tirar fotos não é necessária nenhuma
experiência, basta copiar as artistas pop. Antes, falava-se em liberdade
sexual. Hoje, fala-se em “empoderamento”. Muito justo, já que
empoderamento pode se referir exclusivamente a finanças. (Quando elas
estiverem mais velhas, sem corpo para vender, ninguém se espante com
suicídio e overdose.)
O sexo oposto ao comércio
Como
seria uma oposição frontal a essa maneira de encarar o sexo? Aquela que
focasse exclusivamente no prazer, contra toda motivação de ordem
econômica ou social. Ou seja, o amour libre pregado pelos franceses no
pós-guerra. A mulher que pratica o amour libre não recebe do homem o
pagamento que as prostitutas recebem, nem o sustento que as mães de
família tradicionais recebiam. Ingressou no mercado de trabalho para se
tornar autossuficiente, não quer dever satisfação a marido nem cuidar de
filho, e busca os homens só para o prazer.
Por
que as europeias ficaram tão diferentes das norte-americanas? Além de
fatores religiosos (a Europa é muito mais ateia do que os Estados
Unidos) e culturais (francesas não serem puritanas) eu tenho uma
hipótese de ordem mais pragmática: a Europa perdeu uma grande guerra,
enquanto que os Estados Unidos têm uma história bem macia em comparação a
ela. O único trauma dos EUA é a guerra do Vietnã, cuja mortalidade é
besteira em comparação à da Europa nas duas Guerras Mundiais, e cuja
derrota, remotíssima, não acarretou uma invasão de vietnamitas
estuprando americanas.
Levante
a mão quem tem uma mãe, avó ou bisa bígama. Eu tenho bisavó, por causa
da guerra. Imagine que você se casa em período de paz, que o seu filho
nasce pouco antes do início da II Guerra mundial, e que Mussolini manda o
seu marido para a África do Norte. A guerra não dá nada certo e a sua
cidade fica sob bombardeios dos Aliados. Toda a sua sociedade conhecida
colapsou. O inverno é duro e todos passam fome. Para achar comida, há
que se procurar os lanchinhos dos soldados mortos estendidos no chão.
Enquanto isso, o seu marido está lá na África do Norte.
De
alguma maneira, levando o filho, a minha bisavó saiu da Europa com um
austríaco e casou com ele na Argentina, sem saber se o marido estava
vivo ou morto. A Argentina e os Estados Unidos receberam muitos
fugitivos da II Guerra, sendo a Argentina aberta ao nazifascismo e um
franco asilo de nazistas. Esse povo dificilmente vinha para o Brasil, já
que o país era mais pobre e mais fechado à imigração do que a
Argentina. Se o austríaco não tivesse vontade de morar na praia e não
conseguisse se mudar para o Rio de Janeiro, não tinha Bruna.
Mulheres durante o colapso social
Quando
os homens vão para a guerra, perdem e uma sociedade colapsa, o que
costuma acontecer com as mulheres? Estupro e prostituição. O estupro não
precisa de maiores explicações, já que desde os primórdios da
humanidade as mulheres são despojos de guerra. O exército vencedor
invade, os maridos estão mortos e as mulheres indefesas. A prostituição é
consequência da miséria. E mais: da miséria súbita. Então com a guerra
temos moças carolas e devassas, ricas e pobres, viúvas e solteiras,
igualadas na necessidade de vender a única coisa que têm (o corpo) para
conseguir comida. É evidente que é traumático. Outra situação, mais
nebulosa, é a da mulher que aceita o novo estado de coisas e se mistura
com o vencedor, escolhendo tornar-se sua manteúda em vez de esposa de um
compatriota derrotado.
Assim,
na II Guerra, a Europa assistiu aos homens alemães tomando as
francesas, as gregas, as belgas etc., para em seguida assistir aos
russos, americanos e ingleses tomando as alemãs. Assistiu às judias
fugindo com a roupa do corpo e vendendo o que tinham em seus novos
países. Depois do fim da guerra, as francesas que ficaram com os alemães
foram publicamente humilhadas e tratadas como prostitutas repugnantes.
Penso
que o amour libre é um meio de expurgar a pecha da prostituição. No
pós-guerra, as francesas poderiam jurar de pés juntos que só fizeram por
prazer, sem proveito financeiro. E milhões de mulheres Europa afora
puderam adotar o mesmo escudo contra a mesma acusação que lhes poderia
ser imputada.
Entre o hedonismo e a paranoia, autonomia
De
resto, hedonismo pode ser uma conduta natural de quem crê no colapso
iminente. Que fez parte da descendência desses fugidos da II Guerra?
Prepara-se para o próximo colapso, a III Guerra Mundial tida por
iminente. Quem pegou a II depois de pegar a I tem certeza de que virá a
III. E ensina isso para os filhos, que vão passando de geração em
geração.
O
temor pode ganhar contornos de paranoia. Um traumatizado já decidiu por
sabe deus quais critérios que Garanhuns era o local do mundo aonde o
colapso seria menos grave. Depois mudou de ideia e passou a ser uma área
do interior de São Paulo. Sandor Lernard, o grande humanista que fugiu
do campo de concentração e envelheceu no Brasil, achava que esse lugar
era o Vale do Itajaí. São todos áreas rurais, onde se pode ser o
esquisitão da sustentabilidade, o primeiro a viver em ambiente rural
após gerações de ancestrais urbanos. Pode-se apontar também o surgimento
de um moralismo alimentar, fetiche com orgânico e dietas vegetarianas.
Last,
but not least, nesse perfil há o hábito de os homens também saberem
cozinhar. Quem olhe de fora vai achar que é fruto de considerações sobre
“papéis de gênero”, mas é que só uma sociedade com estabilidade pode
produzir homens incapazes de fritar um ovo. Um homem assim tem que ter
ou uma família sólida (com mãe ou mulher cozinhando), ou uma renda
sólida (pagando sempre uma cozinheira) ou um mercado sólido (comprando
comida pronta). São três coisas consideradas conforto numa situação de
colapso. Se o brasileiro olha para quem cozinha como um abnegado fazendo
as tarefas de alguém humilde, é porque nem passa pela cabeça a situação
de colapso.
Ao
cabo, se o medo do colapso preparou os homens para não precisarem das
mulheres e as mulheres para precisarem dos homens, o casamento não é
mais algo natural. Porque mira-se a autonomia, em vez do amparo mútuo.
E o hedonismo também é uma consequência plausível desse medo do colapso. Se o mundo vai acabar, que o mundo se esbalde antes.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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