O mundo real é maior do que os autos de um processo. Coluna de Sergio Moro para a revista Crusoé:
Nunca
me interessei muito na faculdade por direito penal ou processual penal.
Na época, fazia um bom estágio profissional e, por conta do trabalho, o
meu foco era o direito tributário. Foi apenas quando comecei a atuar
como juiz em casos criminais é que passei a refletir e estudar mais
profundamente sobre este ramo do Direito. Mergulhei então a fundo e
posso dizer, com certa tranquilidade, que dominei a matéria, embora a
vida seja um constante aprendizado e as dúvidas sejam mais constantes do
que as certezas para aqueles que mantêm a mente aberta.
Jamais
imaginaria, porém, que debates sobre direito penal assumiriam tamanha
relevância na vida cotidiana do país. Desde o mensalão, passando pela
Operação Lava Jato, e agora, em menor grau, durante a CPI da Covid, é
impressionante como temas de direito penal, antes restritos às rodas dos
especialistas, ganharam lugar de destaque nas páginas dos jornais e nas
conversas entre as pessoas. Embora o debate público de temas de direito
penal seja sempre salutar, desmitificando a ideia de que eles cabem,
exclusivamente, aos juristas, a causa disso é um pouco desalentadora: a
sucessão de escândalos criminais no mundo político. Será que um dia
teremos uma distinção clara entre notícias do mundo político e as
páginas policiais? A ver.
Há
pessoas muito boas na esfera política, mas é forçoso reconhecer a
dificuldade em expelir da vida pública aqueles que cometem crimes e
continuam com seus malfeitos a dominar os noticiários e a atenção
pública. É interessante notar que, de escândalo em escândalo, muitos
nomes se repetem e alguns vão ficando conhecidos pela imprensa e pelo
público em geral. Eu mesmo, nesta coluna, de uma revista que não é
especializada em Direito, já escrevi sobre diversos temas jurídicos,
alguns mais amplos como o combate a corrupção, outros mais restritos
como a execução da condenação em segunda instância ou foro privilegiado.
Quem poderia imaginar que o brasileiro comum se interessaria sobre esse
tipo de assunto que à primeira vista parece tão hermético?
Mais
recentemente, escrevi sobre o direito ao silêncio, cujo exercício tem
atormentado os inquiridores da CPI da Covid. Aproveitando os assuntos
suscitados pela comissão e autorizado pelo interesse popular sobre o
direito penal, resolvi na coluna de hoje escrever sobre gravações
ambientais. Começo com um exemplo. Jimmy Hoffa era o líder do sindicato
dos caminhoneiros nos Estados Unidos. Era uma figura pública poderosa.
Não era exatamente alguém impoluto e tinha laços com organizações
criminosas. O FBI aproximou-se de um de seus cúmplices e o convenceu a
colaborar com a Justiça. Ele foi orientado a reunir-se com Hoffa, munido
de um gravador escondido, para captar conversas incriminadoras, no que
foi bem sucedido. Hoffa foi processado e condenado por ter subornado um
jurado em processo anterior. Tentou escapar da Justiça alegando que a
prova era ilícita e violava seu direito à privacidade. A Suprema Corte
refutou a reclamação, argumentando, em síntese, que o devido processo
legal não protegia o criminoso que confiou na pessoa errada e lhe
confidenciou seus crimes. Se o interlocutor podia testemunhar o que lhe
foi confessado, também não estaria impedido de usar um gravador para
registrar o ocorrido com mais fidedignidade.
No
Brasil, o tema foi objeto de acirrados debates durante muito tempo nas
cortes de Justiça. Inicialmente, os tribunais não admitiam que um
interlocutor gravasse o outro sem prévia autorização da Justiça. Por
exemplo, no julgamento da ação penal contra o ex-presidente Fernando
Collor, uma gravação feita pelo ex-deputado Sebastião Curió, sem o
conhecimento do interlocutor, foi excluída sob o argumento de que seria
ilícita. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal acolheu posição
semelhante à da Suprema Corte americana, que, aliás, predomina no mundo
inteiro, a de que a gravação de conversa própria feita por um dos
interlocutores pode ser usada como prova mesmo sem prévia autorização
judicial. Isso foi consolidado em um caso envolvendo acusação por crime
de desacato a um juiz e no qual o acusado pretendia utilizar como prova a
gravação que havia realizado da audiência em que o fato teria ocorrido.
No
pacote anticrime que resultou na Lei 13.694/2019, buscamos regular a
escuta ambiental como meio de prova de crimes, condicionando-a à prévia
autorização judicial. Mas a exigência dizia respeito à intromissão em
conversa alheia, de conteúdo criminoso, sem que qualquer dos
interlocutores soubesse da gravação. Para a gravação feita por um dos
interlocutores, ou seja, de conversa própria, propusemos, no projeto,
que ela seria válida mesmo sem prévia autorização judicial e desde que
fosse realizada sem que o caso tivesse chegado antes ao Ministério
Público ou à polícia. Se alguém, buscando denunciar um crime, procurasse
primeiro o Ministério Público ou a polícia, teriam estes condições de
requerer autorização judicial para realizar a gravação mesmo que esta
fosse realizada pelo denunciante de conversa da qual fosse participar.
No entanto, muitos denunciantes de crimes só se sentem à vontade para
procurar as autoridades depois de gravarem a conversa, com a qual obtém
uma prova mais segura do ilícito que pretendem denunciar. Isso ocorre
muito em casos de ameaças, extorsões, violência doméstica e mesmo para
ofertas ou solicitações de subornos.
Infelizmente,
a Câmara alterou essa parte do projeto, admitindo a validade como prova
da gravação por um dos interlocutores sem prévia autorização judicial
somente “em matéria de defesa”. Não ficou claro se a gravação só pode
ser utilizada pela defesa contra uma acusação criminal ou se pode também
ser utilizada para provar um crime por quem é vítima dele, como alguém
que grava uma ameaça recebida. Parece-me que a última alternativa é a
correta e segue a linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
que admitia a gravação pelo interlocutor para legítima defesa de quem
era vítima de um crime.
Controvérsias
à parte, foi aprovada uma outra norma fundamental que estabelece que
não é crime a realização de gravação por um dos interlocutores mesmo sem
autorização judicial (“não há crime se a captação é realizada por um
dos interlocutores”). Assim, ainda que a gravação não possa ser
utilizada eventualmente como prova contra terceiro, pelo menos a pessoa
que realizou a gravação não pode ser penalizada. A regra é clara e
categórica e constitui um alívio para aqueles que, em circunstâncias
extremas, se vêm forçados a realizar gravações escondidas para denunciar
ilícitos dos quais muitas vezes são vítimas. Não altera a regra o fato
de o interlocutor gravado ser uma pessoa comum, um poderoso empresário
ou uma elevada autoridade pública. A norma não faz qualquer distinção e
seria absolutamente estranho, mesmo em uma República acostumada com
privilégios, outorgar um tratamento especial dessa espécie.
Este,
em síntese, é o estado atual da questão. Para que uma gravação
ambiental seja utilizada como prova de um crime, é necessária prévia
autorização judicial. A exceção é a gravação feita por um dos
interlocutores para “matéria de defesa” e que não depende de anterior
decisão judicial. Ainda assim, o interlocutor que grava conversa da qual
participa não comete qualquer crime, ainda que o conteúdo gravado não
possa eventualmente ser utilizado, como prova, contra a pessoa gravada,
em vista da restrição imposta, a meu ver injustificadamente, pelo
legislador. Uma gravação que não pode ser utilizada como prova pode
ainda assim ter um valor significativo a depender de seu conteúdo e de
seus reflexos fora dos processos. O mundo real é maior do que os autos
de um processo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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