Em um contexto político altamente polarizado, não é difícil perceber que essa seria a receita para um aumento da instabilidade política, econômica e social do país. Editorial da Gazeta do Povo:
Nos
últimos dias, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira
(PP-AL), tem dado sinais de que pode colocar em pauta a mudança do
sistema de governo, transformando-o num tipo de semipresidencialismo. O
modelo defendido seria uma espécie de mistura do modelo presidencialista
com o parlamentarista, presente em algumas democracias do mundo. Na
opinião de Lira e de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) como
Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, a mudança poderia reduzir o nível
atual de conflito entre os três Poderes e devolver certa estabilidade ao
cenário político nacional, independentemente do resultado das eleições
de 2022.
No
plano de fundo da proposta de Lira e outros atores envolvidos, que
incluem também defensores do parlamentarismo espalhados em diversos
partidos, especialmente no PSDB, reside uma preocupação legítima com a
instabilidade institucional do país, acentuada progressivamente desde as
manifestações de junho de 2013. Ademais, o Brasil assistiu a dois
processos de impeachment de dois mandatários entre os cinco eleitos
desde 1989. E, atualmente, existe pressão para que seja aberto um novo
processo contra o atual presidente, Jair Bolsonaro.
O
sistema político brasileiro, conhecido como presidencialismo de
coalizão, vem funcionando na prática em grande parte com trocas
fisiológicas entre Legislativo e Executivo, com vistas a formar maioria
com diversos partidos sem clara orientação programática, para garantir a
governabilidade.
Esse
sistema gera frequentemente dissociações entre as plataformas políticas
eleitas no Executivo e a maioria parlamentar, composta por uma miríade
de partidos sem uma definição política clara. Logo, a solução do
semipresidencialismo apareceria como uma tentativa de deixar o jogo
institucional “mais fluido”. Afinal, o modelo semipresidencialista
geralmente se baseia no esvaziamento de prerrogativas da Presidência da
República, passando as questões de política interna e a divisão de
recursos para garantir a governabilidade nas mãos de um Chefe de
Governo, eleito pelo Parlamento. Por isso, seus defensores alegam que o
semipresidencialismo costuma apresentar um maior nível de “consenso
institucional”, refletindo, senão a vontade geral da maioria, um nível
minimamente adequado de correlação de forças e equilíbrio de
antagonismos.
Mas,
no caso concreto do Brasil, chama a atenção que os envolvidos
entusiasmados nesse debate não percebam os riscos constitutivos que ele
carrega. Em primeiro lugar, é forçoso reconhecer o nível de
representatividade insuficiente do Congresso Nacional dado o atual
sistema eleitoral proporcional. Dos 513 deputados eleitos na Câmara, só
27 dependeram do próprio voto para se eleger.
Isso
significa que somente 5,26% dos deputados federais não dependeram do
chamado quociente eleitoral, calculado com base nos votos próprios e de
toda a coligação na qual os candidatos estão inseridos. É difícil
imaginar que, num sistema assim, um governo formado pela maioria
parlamentar tivesse legitimidade popular para governar sem grandes
conflitos institucionais. Ainda mais num contexto em que o Congresso
teria apoiado abertamente a diminuição de poderes do Presidente da
República, que continuaria sendo eleito pela maioria dos votos de todo o
País.
Em
outras palavras, a adoção de um novo sistema de governo no Brasil que
conferisse mais poder ao Parlamento teria de passar antes, para obter
legitimidade, por uma revisão das próprias regras que regem a eleição
dos atuais deputados.
Muito
mais importante e urgente para sanar a instabilidade política que ora
nos assola é a reforma do sistema eleitoral, adotando um modelo de tipo
distrital misto, no qual estados e municípios são divididos em
distritos, nos quais cada partido ou coligação indica um único candidato
pela disputa da cadeira ao Legislativo. Esse tipo de sistema, além de
reduzir os custos das eleições, tornaria a relação entre a população do
distrito e o parlamentar que a representa bem mais próxima. Assim, a
própria formação de coalizões governamentais representaria muito mais as
demandas de fatias do eleitorado. Nesse contexto, até mesmo o debate
parlamentar para eventual troca de modelo de governo estaria mais
conectado com interesses reais da população.
Por
outro lado, o debate atual tem algo de reprise fracassada da história
política nacional. Não é de hoje que se tenta implementar um modelo
próximo ao parlamentarismo, sendo sucessivamente derrotado pela vontade
da maioria nos momentos em que isso foi submetido ao escrutínio da
população. O parlamentarismo foi derrotado em plebiscito 1963, depois de
ter sido implementado por decisão do Congresso em 1961. Depois, foi
novamente derrotado em plebiscito em 1993, mesmo depois da crise
política que levou ao impeachment de Fernando Collor. Ou seja, todos os
indícios são que soluções que retirem ainda mais poder político do
Presidente majoritariamente eleito seriam amplamente rejeitadas pela
população.
Em
um contexto político altamente polarizado, não é difícil perceber que
essa seria a receita para um aumento da instabilidade política,
econômica e social do país.
O
Congresso faria mais bem ao reformar suas próprias condições de
existência e estruturação, tornando a política mais próxima do
eleitorado e mais transparente.
A
implementação do voto distrital misto teria mais peso em termos de
aprimoramento da democracia brasileira, contribuindo também para a
restauração do equilíbrio necessário entre os Poderes, na medida que um
Legislativo mais representativo é também um Legislativo mais forte,
capaz de debater agendas nacionais e contribuir para a construção do bem
comum.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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