BLOG ORLANDO TAMBOSI
A revista The Passenger reúne, em cada edição, textos sobre diversos aspectos de um país. No Brasil, a Editora Âyiné passa a publicar a revista italiana, cujo primeiro número é dedicado ao Japão. O Estado da Arte reproduz um ensaio do escritor e editor Ian Buruma sobre o populismo (que não há) no Japão.
Mesmo
com uma onda de populismo de direita varrendo a Europa, os Estados
Unidos, a Índia, o Brasil e partes do sudeste da Ásia, o Japão parece
até agora estar imune. Não há demagogos japoneses como Geert Wilders,
Marine Le Pen, Donald Trump, Narendra Modi, Jair Bolsonaro ou Rodrigo
Duterte, que exploraram ressentimentos reprimidos contra as elites
culturais ou políticas de seus países. Por quê?
Talvez
o mais próximo que o Japão já tenha chegado disso tenha sido o
ex-prefeito de Osaka, Tōru Hashimoto, que fez seu nome a princípio como
personalidade da TV e depois se desgraçou em anos recentes ao elogiar o
uso de escravas sexuais nos tempos de guerra pelo Exército Imperial
Japonês. Suas visões ultranacionalistas e hostis às mídias liberais eram
uma versão familiar do populismo de direita. Mas ele nunca conseguiu se
alçar à política nacional.
Hashimoto
hoje oferece aconselhamento gratuito ao ex-primeiro-ministro Shinzō Abe
sobre o endurecimento das leis de segurança nacional. E nisso reside
uma explicação para a aparente ausência de populismo de direita no
Japão. Ninguém poderia estar mais identificado com a elite política do
que Abe, neto de um ministro de gabinete dos tempos de guerra,
posteriormente primeiro-ministro, e filho de um ministro das relações
exteriores. E no entanto ele compartilha da hostilidade de populistas de
direita em relação a acadêmicos, jornalistas e intelectuais liberais.
A
democracia japonesa do pós-guerra foi influenciada nos anos 1950 e 1960
por uma elite intelectual esquerdista que buscou conscientemente
distanciar o Japão do nacionalismo dos tempos de guerra. Abe e seus
aliados estão tentando acabar com essa influência. Seus esforços para
revisar a constituição pacifista japonesa, restaurar o orgulho em seu
histórico de guerra e descreditar as grandes mídias «elitistas», como o
jornal de centro-esquerda Asahi Shimbun, renderam-lhe elogios do antigo
estrategista de Donald Trump, Stephen Bannon, que chamou Abe de Trump
antes de Trump. Em certos aspectos o raciocínio de Bannon estava
correto. Em novembro de 2016 Abe disse a Trump, «Eu consegui amansar o
Asahi Shimbun. Espero que da mesma forma você também consiga amansar o
The New York Times». Até como piada entre os dois supostos líderes
democráticos ela foi infame.
Então
é possível dizer que os elementos do populismo de direita estão no
cerne do governo japonês, incorporados por um rebento de uma das
famílias mais elitistas do país. Esse paradoxo, no entanto, não é a
única explicação para a ausência de uma versão japonesa de Le Pen, Modi,
Bolsonaro ou Wilders.
Para que demagogos possam ser capazes de incitar ressentimentos populares contra estrangeiros, cosmopolitas, intelectuais e liberais deve haver disparidades financeiras, culturais e educacionais amplas e óbvias. Esse era o caso do Japão em meados da década de 1920, quando extremistas militares encenaram um golpe frustrado que tinha como alvo banqueiros, empresários e políticos, que estavam, a seu ver, corrompendo a política japonesa. O golpe foi apoiado por soldados que em muitos casos tinham crescido em áreas rurais pobres. Suas irmãs às vezes tinham de ser vendidas para bordéis de grandes cidades para que suas famílias sobrevivessem. As elites urbanas cosmopolitas ocidentalizadas eram o inimigo — e a opinião pública estava em grande parte do lado dos rebeldes.
O
Japão contemporâneo pode ter suas falhas, mas é hoje muito mais
igualitário do que os EUA, a Índia ou muitos países europeus. Impostos
elevados tornam difícil legar patrimônio como herança. E, ao contrário
dos Estados Unidos, onde a prosperidade material é ostentada —
notavelmente pelo próprio Trump — os japoneses mais abastados tendem a
ser discretos. O Japão ultrapassou os EUA como um país da classe média.
O
ressentimento se alimenta de uma ideia de humilhação, uma perda de
orgulho. Em uma sociedade na qual o valor humano é medido pelo sucesso
pessoal, simbolizado pela fama e pelo dinheiro, é fácil se sentir
humilhado por uma relativa falta de ambos, por ser apenas mais um rosto
na multidão. Em casos extremos, indivíduos desesperados assassinarão um
presidente ou um astro do rock apenas para aparecer nas notícias. Os
populistas encontram apoio entre aqueles rostos ressentidos na multidão,
pessoas que sentem que as elites as traíram ao privá-las de seu senso
de orgulho em sua classe, sua cultura e sua raça.
Isso
ainda não aconteceu no Japão. E a cultura pode ter alguma relação com
isso. A autopromoção, no estilo americano, é vista com maus olhos. Na
verdade, o Japão tem uma cultura de celebridades, impelida pelas grandes
mídias, mas o valor próprio é definido menos pela fama ou riqueza
individual do que por ter um lugar em um projeto coletivo e por fazer o
trabalho para o qual se é encarregado tanto quanto do qual se é capaz.
As
pessoas nas lojas de departamentos parecem ter orgulho genuíno de
embrulhar as mercadorias com esmero. Alguns trabalhos — pense naqueles
homens de meia-idade uniformizados que sorriem e se curvam para os
clientes que entram nos bancos — parecem ser de todo supérfluos. Seria
ingênuo presumir que essas tarefas proporcionam uma imensa satisfação,
mas elas dão às pessoas uma ideia de lugar, um papel na sociedade, por
mais humilde que seja.
Enquanto
isso, a economia doméstica japonesa continua sendo uma das mais
protegidas e menos globalizadas no mundo desenvolvido. Há diversas
razões por que os governos japoneses têm resistido ao neoliberalismo
promovido no Ocidente desde os anos Reagan/Thatcher: interesses
corporativos, privilégios burocráticos e políticas corruptas de vários
tipos. Mas preservar o orgulho no emprego, ao custo da eficiência,
também é uma delas. Se isso sufoca o projeto individual, que seja.
O
Thatcherismo provavelmente tornou a economia britânica mais eficiente,
mas, ao acabar com sindicatos e outras instituições estabelecidas da
cultura da classe trabalhadora, os governos também removeram fontes de
orgulho de pessoas que costumam ter trabalhos desagradáveis. Eficiência
não cria uma ideia de comunidade. Aqueles que hoje se sentem à deriva
atribuem a culpa de seus apuros às elites que são mais bem educadas e às
vezes mais talentosas e que portanto têm mais probabilidade de
prosperar em uma economia global. Uma das consequências mais irônicas é
que muitas dessas pessoas nos Estados Unidos elegeram como presidente um
bilionário narcisista que se gaba de sua riqueza, seu sucesso pessoal e
seu gênio. Não é provável que nada assim aconteça no Japão. Podemos
aprender algo valioso ao refletir sobre os porquês.
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