Aquela grotesca foto foi estratégia para tentar melhorar a declinante imagem de Bolsonaro. Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
A
exploração política do corpo doente e da morte é uma marca da
estratégia do presidente Jair Bolsonaro. Ela é empregada tanto em sua
forma de governar quanto em seu objetivo reeleitoral. Mais de 530 mil
brasileiros morreram vítimas da covid-19, ou seja, da incúria
governamental e do desprezo pelo outro, sem que palavras de
solidariedade e de compaixão acompanhassem as famílias vitimadas. Agora,
num estranho – mas nem tanto – movimento paradoxal, o mesmo presidente
expõe publicamente uma foto de seu corpo doente, procurando colocar-se
como vítima.
Normalmente,
embora se tenha tornado difícil falar de normalidade nos tempos que
correm, as pessoas, na doença e na morte, se recolhem, voltam-se para os
seus sentimentos e pensamentos, entre os seus. O seu comportamento
caracteriza-se pela privacidade, pela união familiar e da amizade, numa
comunhão que assim se forma. Valores morais e religiosos fazem parte
dessa atitude, por diferentes que sejam os princípios e os credos. Há um
tipo de junção que tenderíamos a caracterizar como humana, infensa a
considerações de ordem política. Há algo aqui que diz respeito à
dignidade.
A
grotesca foto do presidente Bolsonaro foge a esse padrão. Em vez da
privacidade, a exposição pública; em vez do recolhimento, a exploração
política. Não é a cura que está em jogo na estratégia escolhida, apesar
de ser a sua preocupação individual. Não é a pessoa doente que foi
exibida, mas o candidato que procura aprimorar a sua estratégia
eleitoral, uma vez que sua imagem pública está cada vez mais
deteriorada.
A
imagem de seu corpo retrata a sua curva política descendente, embora
procure ele dela aproveitar-se para melhorar seus índices de aprovação
política. Não é o corpo decaído que está em questão, mas a queda de sua
imagem eleitoral.
A
sua estratégia atual é uma mera repetição de seu comportamento e dos
seus familiares e aliados quando da facada que sofreu em 2018. Naquele
então, ela lhe serviu para angariar simpatia e popularidade, a compaixão
dos outros, dando-lhe a boa justificativa de não comparecimento a
nenhum debate com os outros candidatos a presidente. Não teve de expor
suas ideias, não somente porque não as tinha, mas porque estava
impossibilitado de fazê-lo. A ferida e a presença da morte tornaram-se
trunfos eleitorais.
Acontece,
porém, que a situação mudou, pois quem não se compadeceu com as vítimas
da pandemia não deveria – nem poderia – querer suscitar o mesmo
sentimento em relação a si mesmo. O que foi um evento pessoalmente
adverso se torna nessa sua reapresentação uma farsa. Como procurar
suscitar a compaixão para si, quando não tiveram o presidente e seus
asseclas nenhuma compaixão pelos outros?
Não
se trata apenas de mau gosto na retratação do corpo sofrido. A questão é
muito maior, uma vez que põe em pauta uma espécie de gozo mórbido em
relação a si mesmo que é a outra face do gozo com a morte alheia.
O
atraso na compra das vacinas, a aposta na imunização de rebanho, a
publicidade das poções mágicas como “remédio” preventivo para o vírus, a
falta de respiradores com pessoas morrendo de asfixia, as negociações
políticas de quais vacinas adquirir e, agora, as denúncias de corrupção,
reveladas pela CPI, são comportamentos que produzem imagens públicas
que vieram para ficar. Quando a história deste período for ulteriormente
estudada, certamente os historiadores se perguntarão como os
brasileiros puderam chegar a tal grau de loucura política. Será a
inteligibilidade do ininteligível.
Como
não poderia deixar de ser, a estratégia bolsonarista tem como objetivo
inscrever o estado de saúde do presidente no marco da teoria da
conspiração. O problema residiria, de acordo com essa insensatez
doutrinária, em que o criminoso que o feriu seria um agente do PSOL e,
mais amplamente, do PT. E investigações não teriam sido feitas.
O roteiro é sempre o mesmo. Toda investigação que não corresponde ao objetivo presidencial se torna uma não investigação.
Mas
houve, sim, investigação, cujo resultado foi o de que esses partidos
não tiveram nenhum envolvimento naquele episódio, que se tratou de um
ato fruto da conduta individual de uma pessoa totalmente desequilibrada.
Eis o fato, porém, como não corresponde à versão bolsonarista, torna-se
um não fato.
Trata-se
do mesmo procedimento que estamos observando a propósito do voto
impresso. Não houve nenhuma prova, nem indício, de que a urna eletrônica
tenha sido violada, mas, antecipando uma derrota possível, o presidente
Bolsonaro não cessa de repetir que apresentará as provas, sem nunca
fazê-lo. O fato da lisura do pleito, do qual saiu vencedor, se torna
algo sob suspeita, fruto de uma conspiração. A teoria é tão esdrúxula
que significaria, tomando-a a sério, a conspiração que o levou ao poder!
Nesse
sentido, a sua foto é somente um outro aspecto de sua política, que
considera todo aquele que dele discorde um inimigo a ser eliminado. É a
paranoia do outro que procuraria abatê-lo!

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