O Oleiro estava seguro e em paz. Afinal, ele sabia que, se um dia a igreja viesse a desmoronar, não seria por causa de um tijolo que ele moldou. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff:
Antes
de contar a parábola do oleiro, preciso falar sobre o caso do Jesus
enforcado. Haverá aqueles que dirão que uma coisa não tem nada a ver com
a outra, mas minha esperança é a de que os leitores sejam capazes de
unir os dois pontos deste texto cuja costura é propositadamente frouxa –
ainda que um tanto óbvia.
Pois
bem. Há uns vinte anos, o saudoso jornalista Daniel Piza cometeu um
erro absurdo na Folha de São Paulo: no meio de uma frase qualquer, disse
que Jesus tinha morrido enforcado. Entre jornalistas, ele foi motivo de
zombaria por um tempo. Mas, naqueles tempos pré-redes sociais, erros
assim eram facilmente perdoados porque não se presumia má-fé.
Na
única vez em que me encontrei com Piza, não perdi a oportunidade de
perguntar a ele sobre o erro. Um tanto quanto constrangido, ele deu as
explicações que se esperava: pressa, descuido, lapso. O mais importante,
contudo, foi o que ele disse sobre a reação dos leitores ao erro. “Não
passou pela cabeça de ninguém que eu fosse estúpido a ponto de realmente
achar que Jesus foi enforcado, e não crucificado. Uma vez cometido, o
erro estava imediatamente perdoado”.
Sem
querer mergulhar, mas molhando o dedo mindinho no saudosismo, dá para
dizer que, naquela época, há não mais do que vinte anos, ainda havia
espaço para o erro honesto, aquele que se comete não por instinto
assassino, e sim porque o reflexo do sol na areia da praia cegou
Meursault por alguns segundos. Agora, à parábola.
A parábola do oleiro
Um
dia o governante de uma aldeia muito próspera e feliz decidiu construir
a igreja mais linda de todos os tempos. Para isso, contratou os
melhores arquitetos, engenheiros e artistas sacros do mundo. A
construção, contudo, jamais seria erguida sem tijolos. Simples tijolos.
E, assim, o governante contratou (sem licitação, porque nessa parábola o
déspota é honesto e esclarecido) uma olaria nas proximidades.
Na
olaria trabalhavam milhares de homens de todas as origens e intenções.
Havia os que trabalhavam apenas pelo pão de cada dia. Havia os que
trabalhavam de má vontade, porque preferiam estar dormindo. Havia até
mesmo os que trabalhavam odiando os tijolos. E, entre eles, trabalhava
um Oleiro nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem feio nem bonito.
Era comum e discreto – e o anonimato lhe cai bem. Se dou a ele, aqui, a
distinção do “o” maiúsculo, é só para que não o percamos de vista em
meio à multidão.
O
Oleiro trabalhava num canto, fazendo os melhores tijolos que suas mãos
conseguiam moldar. Ao redor dele, no entanto, a história era
ligeiramente diferente. Havia homens que usavam pouca argila e homens
que usavam argila demais. Havia aqueles que tiravam dos fornos tijolos
ainda crus e diziam “ah, que se dane, vai assim mesmo” e outros que
tostavam os tijolos e diziam “ah, que se dane, vai assim mesmo”.
O
Oleiro não. Dizer que ele se esmerava em cada tijolo vai parecer um
exagero, mas como isso daqui é uma parábola, não vejo problema algum em
exagerar: o Oleiro se esmerava em cada tijolo. Usava a quantidade certa
de argila, deixava os tijolos no forno pelo tempo necessário – nem um
minuto a mais, nem um minuto a menos.
Uma
vez prontos, os tijolos do Oleiro eram reunidos aos tijolos dos demais e
enviados ao campo de obra da igreja. Que, aos poucos, foi ganhando
forma, com suas torres altíssimas, mas que jamais pretendiam se tornar
torres de Babel. Aparentemente, e apesar de um ou outro tijolo
defeituoso, feito às pressas ou sem cuidado, as paredes eram sólidas e
destinadas à Eternidade.
Um
dia, depois do trabalho, o Oleiro tirou a argila que se acumulava sob
as unhas, vestiu seu melhor traje e foi até a aldeia ver como estava
ficando a obra que ele ajudava a construir na discrição do seu
anonimato. Nas paredes ainda por receber o reboco, ele reconheceu aqui e
ali o trabalho defeituoso da preguiça, da pressa e até da arrogância de
seus colegas. Mas não disse nada nem temeu que um dia a igreja viesse a
ruir por causa disso.
O
Oleiro estava seguro e em paz. Afinal, ele sabia que, se um dia a
igreja viesse a desmoronar, não seria por causa de um tijolo que ele
moldou.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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