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Na Europa, a ideia de não confessionalidade do Estado tem sido desviada do seu propósito inicial. A laicidade acabou por tomar o lugar oficial e com isso estamos a perder liberdade. João Diogo Barbosa via Observador:
Na
semana passada, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu sobre o
caso de duas alemãs, uma educadora do ensino especial e uma operadora
de caixa, suspensas pelos seus empregadores depois de se recusarem a
deixar de usar um “lenço islâmico”.
E os juízes decidiram contra as duas mulheres, considerando, nos termos do comunicado de imprensa,
que “a proibição de proibição do uso de qualquer forma visível de
expressão das convicções políticas, filosóficas ou religiosas no local
de trabalho pode ser justificada pela necessidade de a entidade patronal
se apresentar de forma neutra perante os clientes ou de prevenir
conflitos sociais”.
É uma frase impressionante, que usa uma linguagem menos cuidadosa do que a do acórdão,
mas que respeita o espírito da decisão. É também o início de todos
problemas. Desde logo, porque há boas razões para não se fingir que é
possível amalgamar convicções políticas ou filosóficas (um conceito
extraordinário, provavelmente usado para não deixar escapar as massas de
trabalhadores que vestem t-shirts de apoio ao imperativo kantiano nos
espaços de atendimento ao público) com a fé. A liberdade religiosa é
protegida autonomamente como parte de uma esfera de consciência, por
definição individual, com a possibilidade de associação e manifestação
pública. As “convicções” religiosas são diferentes da militância
partidária, do voto ou da participação política em sentido amplo, tanto
pela sua natureza como pela forma de se expressarem. Dizê-lo não é
original e não devia ser polémico, mesmo para um juiz no Luxemburgo.
Na
Europa, a ideia de não confessionalidade do Estado tem sido desviada do
seu propósito inicial e passamos da posição consensual sobre como o
Estado não deve assumir como sua uma qualquer religião, especialmente
quando nele várias têm de conviver, para uma situação em que as
instituições sociais se opõem abertamente à ideia de religião e à sua
exteriorização. A laicidade acabou por tomar o lugar oficial e com isso
estamos a perder liberdade.
A
ideia de que um ambiente “neutral” é um ambiente que exclui qualquer
sinal de religião contraria o nosso passado e, segundo os números,
também não é assim tão pacífica no presente. Apesar de todo o discurso
de tolerância e progresso, a União Europeia tem hoje problemas de
discriminação contra muçulmanos, casos de antissemitismo e a influência
da Igreja Católica na política a justificar uma parte da má relação com o
Leste europeu. Isso acontece porque a liberdade religiosa não é
fracionável: atacar uma religião é pelo menos abrir a porta ao ataque a
todas as outras e não se consegue defender uma religião em detrimento
das restantes. Os casos acumulam-se, dos crucifixos nas salas de aulas às formas rituais de obter carne animal,
e o debate parece estar a deslocar-se para a manutenção de vestígios
religiosos nas nossas sociedades, o que seria um retrocesso.
Para
além de falhar nos princípios, a decisão do tribunal também traz
problemas mais simples. É evidente – e isso é reconhecido tanto pelos
tribunais alemães como pelo Tribunal de Justiça – que um juízo sobre
este tema será sempre mais importante para as mulheres muçulmanas do que
para qualquer outro grupo, porque é por referência a elas que o
vestuário se tornou objeto de legislação e litigação intensas nos
últimos anos. Perante isto, o Tribunal de Justiça decidiu que na União
Europeia de 2021 valia a pena obrigar a escolher entre religião e
emprego. Da próxima vez que nos queixarmos da “marginalização” de
algumas comunidades como a fonte de todo o tipo de problemas, devíamos
lembrar-nos desta decisão.
João Diogo Barbosa, jurista, é um dos comentadores residentes do Café Europa na
Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer
Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as
segundas-feiras às 14h00 e às 22h00
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