Movimentos reativos explodem a partir de um fato dramático, como no caso do Black Lives Matter, e se propagam anarquicamente na velocidade das redes. Fernando Schüler para a Veja:
Tempos
atrás participei de um debate sobre a democracia atual e lá pelas
tantas me perguntaram: “Quando é que vamos superar essa sensação
permanente de ‘crise’?”. A sensação tinha a ver com as coisas que todos
sabemos — o radicalismo das redes, a polarização crescente, os novos
populismos, um certo elemento caótico e violento, que vai daquela
invasão ao Capitólio, por ativistas ligados ao QAnon, até os movimentos
de rua que vêm ocupando tantas capitais latino-americanas.
“Não
vamos”, respondi à pergunta. O barulho e a instabilidade vieram para
ficar. Há muitos sinais nessas direção. “Participação política” foi o
traço das democracias que mais cresceu, nos últimos anos, segundo a The
Economist Intelligence Unit. Manuel Castells já havia tratado disso
alguns anos atrás, mapeando dezenas de movimentos sociais que iam desde a
Primavera Árabe até o Occupy Wall Street, em seu Redes de Indignação e
Esperança. Movimentos reativos que explodem a partir de um fato
dramático, como no caso do Black Lives Matter, e se propagam
anarquicamente na velocidade das redes.
É
possível identificar essas coisas observando o lado mais comezinho da
politica, aqui mesmo no Brasil. Dias atrás lia que Bolsonaro já passou
dos 120 pedidos de impeachment. Mais do que a soma de FHC, Dilma e
Temer. De uma medida extrema, o impeachment se tornou o feijão com arroz
da República. A política assume a lógica da guerra. Isso não era muito
diferente, diga-se de passagem, no último governo Dilma, que já iniciou
em crise, e assim foi até o impeachment, e no governo Temer, barrando
dois processos de investigação, a um alto custo, no Congresso, e vivendo
na corda bamba.
Um
caminho para entender o fenômeno é observar que vivemos em uma era de
excesso. Em duas ou três décadas passamos de alguns milhares para muitos
milhões de cidadãos palpitando sobre política, todos os dias. Hoje são
algo em torno de 15% a 20% do eleitorado, nos meios digitais. Não passa
de ingenuidade imaginar que isto não geraria barulho e a “sensação
cotidiana de abismo”, na definição talvez exagerada que ouvi por estes
dias.
O
aspecto crucial talvez seja o overload de informação. Já nos anos 90, o
psicólogo David Lewis cunhou o termo “fadiga informativa”. Soterrados
de informação, somos levados a uma “paralisia analítica”. Traço óbvio
desse fenômeno é a extrema dificuldade de separar o relevante do
irrelevante no debate público. O último bate-boca da Anitta ou do Felipe
Neto, a última frase esquisita de Lula ou Bolsonaro. “O que é golden
shower?” foi, até hoje, o tuíte presidencial que mais mobilizou as
pessoas, desde o início do governo.
Outra
marca do debate atual é a imediatidade. Perdeu-se um traço essencial da
democracia pré-digital: o tempo das instituições. Tempo em que se
esperava o dia seguinte para responder a um artigo no jornal, ao invés
de gastar alguns segundos para despejar até 280 toques, no Twitter, ou
devolver um vídeo feito com os nervos à flor da pele, no Instagram. Dias
atrás passei os olhos num bate-boca desses, entre o governador de São
Paulo e o ministro da Saúde, sobre o ritmo da vacinação. Eu me lembrei
de Daniel Kahneman e seu “sistema 1”, o lado do nosso cérebro que reage
instintivamente, meio sem pensar. No fundo é isso. A pauta da democracia
deveria ser dada pela reflexão, pelo sistema 2. Deveríamos dar um tempo
e pensar sobre o que estamos dizendo, sobre a veracidade de uma
informação, sobre a adequação de uma crítica. Mas o fato é que os
instintos vão dando o tom da orquestra na democracia.
Ainda
outra marca do debate atual é o não esquecimento. Muito já se comparou a
internet ao impagável personagem de Borges, Funes, el memorioso. Funes
leva uma pancada na cabeça e a partir daí guarda rigorosamente tudo em
sua memória. A tal ponto que já não pode mais pensar, porque pensar
exige a capacidade de esquecer. Andamos todos como Funes. Há vinte ou
trinta anos relembramos aqueles vídeos de Bolsonaro falando em matar
“mais uns 30 000”, e Lula dizendo que pelotense é “tudo viado”. No
imenso mar do não esquecimento, cuspimos raiva e ressentimento todos os
dias. Muita gente diz que isso é bom. Que é preciso saber quem são as
pessoas, se pecaram, se merecem ou não o perdão. Cada um pode julgar.
Há
um lado positivo nisso tudo. Ainda lembro quando Francis Fukuyama
lançou sua tese sobre o “fim da história”, dizendo que finalmente
havíamos chegado a certo consenso, no plano das ideias, em torno da
democracia liberal como o sistema capaz de expressar o “desejo humano
pelo reconhecimento”. O senso de autorrespeito que leva as pessoas a
exigir que governos “as tratem como adultos, e não como crianças, e
reconheçam sua autonomia como indivíduos livres”. Não é disso, no fundo,
que se trata? Não é o desejo de reconhecimento que leva as pessoas a
sair às ruas de Santiago e pedir uma nova Constituição? A exigir
democracia, na Nicarágua, formar redes e uma infinidade de movimentos,
identitários ou conservadores? Elas fazem isso de maneira desordenada e
barulhenta? É possível. Alguém tem uma sugestão de como isso poderia ser
feito silenciosa e ordenadamente?
Yascha
Mounk observou que nosso mundo democrático fez encolher a distância
entre “insiders e outsiders”, na política. Isto é tudo muito excitante,
mas fez crescer o custo do consenso e da governabilidade das
instituições democráticas. Resultado disso tem sido o declínio
persistente dos indicadores de confiança dos cidadãos na própria
democracia. E aí podemos ter, de fato, um problema.
Não
penso que exista uma grande saída para resolver o problema do mal-estar
da democracia atual. É preciso “equilibrar o pêndulo”, como um dia me
sugeriu Zygmunt Bauman. O pêndulo aqui diz respeito à aceitação do
ativismo e da competição de ideias, de um lado, e da estabilidade mínima
que o sistema precisa para funcionar, de outro. Não é um equilíbrio
fácil. Daí a intuição que me levou a dar aquela resposta arriscada. Nós
vivemos um espetacular avanço democrático a partir dos anos 80, e as
instituições agora se adaptam ao impacto da revolução tecnológica. Os
indivíduos ganharam poder, há muito mais gente no palco, a diversidade
de vozes e estilos se tornou para muitos insuportável. Uma opção é
imaginar que algum bom ditador (ao estilo do Partido Comunista Chinês,
como escutei por estas semanas) possa nos dar uma direção. Não é esse,
por óbvio, o caminho. É mergulhados até o pescoço neste mundo nervoso,
movido a liberdade, que teremos de conduzir nossa aventura coletiva.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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