Demétrio Magnoli
Folha
Nos cem anos do Partido Comunista Chinês (PCC), celebrados em 1º de julho, Lula ofereceu um panegírico completo. “Por que a China pode fazer o que diz? Porque ela tem um partido politico forte.” O erro básico do líder da esquerda brasileira é conceitual: desde que chegou ao poder, o PCC deixou de ser um partido político.
Partido é uma parte, uma parcela, uma facção. Partidos só existem no plural, em sistemas de concorrência política, que reconhecem a legitimidade da divergência de opiniões no conjunto da sociedade.
PARTIDO-ESTADO – O partido único, uma contradição em termos, não é um partido mas o reflexo da captura do Estado por uma elite política que cala as vozes de todos os demais —e, portanto, almeja eliminar a própria política. O PCC é, desde 1949, um Partido-Estado.
A utopia da igualdade social funcionou, até 1989, como fonte de legitimação discursiva dos totalitarismos comunistas. Três décadas atrás, o PCC sobreviveu à queda da URSS substituindo a ideologia comunista pelo nacionalismo chinês e o sistema econômico fechado por um capitalismo de Estado integrado à globalização.
Na China, a fome, crônica ou aguda, deu lugar a um longo ciclo de crescimento da economia e da renda. Hoje, a esquerda ainda enfeitiçada pelo regime de Partido-Estado só pode justificá-lo sob o argumento da eficiência.
DISSE LULA – “A China é capaz de lutar contra o coronavírus tão rapidamente porque o governo tem controle e poder de comando”, disse Lula. Hitler ergueu uma poderosa máquina de guerra e uma colossal fábrica de extermínio. Stálin montou a extensa rede de campos do gulag e seus sucessores transformaram a URSS em superpotência nuclear.
O totalitarismo é eficiente para finalidades que exigem comando inconteste sobre populações e recursos. A China congelou a circulação do vírus por meio de lockdowns absolutos. Mas, quando se trata de inovação, o cenário é outro: as vacinas mais eficazes nasceram nas sociedades abertas ocidentais.
Eficiência, o argumento de Lula, é atributo que exige qualificação. Os sistemas totalitários revelam-se singularmente ineficientes quando se trata da transição de poder. As democracias operam sob regras claras e consensuais de sucessão no governo. Nos regimes de Partido-Estado, a sucessão desenvolve-se sob a forma de guerras palacianas mais ou menos subterrâneas. A política, que jamais é efetivamente abolida, manifesta-se como conflito faccional dentro do partido único.
REVOLUÇÃO CULTURAL – Na China maoísta, a Revolução Cultural, deflagrada para cimentar o poder pessoal do Timoneiro, deixou um legado de milhões de cadáveres. O PCC, em seu centésimo aniversário, segue enredado na armadilha da transição de poder.
Deng Xiaoping, o segundo Timoneiro, inventou o mecanismo da “direção coletiva” para afastar o espectro das guerras sucessórias. A geringonça estabilizou o regime durante 20 anos, os ciclos de governo de Jiang Zemin e Hu Jintao, mas emperrou com a ascensão de Xi Jinping.
As tensões internas provocadas pela expansão da classe média e dos intercâmbios com o exterior e pelo advento das redes sociais conduziram a uma nova concentração pessoal de poder. Xi Jinping tornou-se o terceiro Timoneiro: líder vitalício, oráculo da Verdade Estatal. A China que Lula não vê restaurou o sistema de governo maoísta, cuja estabilidade depende do recurso à violência crescente.
UTOPIA IGUALITÁRIA – Os comunistas justificavam o sistema de Partido-Estado por meio de uma invocação moral: a utopia igualitária. Lula, que só é comunista nos discursos delinquentes do bolsonarismo, escolheu justificá-lo pela razão pragmática: a eficiência de comando.
Na hipótese benevolente, o candidato presidencial exprime-se sinceramente, como prisioneiro da própria ignorância. A hipótese alternativa é que, de fato, ele admira —e inveja— um sistema no qual a opinião divergente constitui crime punível com o degredo ou a morte.
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