Dirceu, O Cadeieiro, revela os encantos da vida na gaiola. Augusto Nunes para a Oeste:
Em
outubro de 2015, ainda no início da terceira temporada na cadeia, José
Dirceu de Oliveira — ex-presidente da União Estadual dos Estudantes de
São Paulo, ex-presidente do PT, ex-deputado estadual, ex-deputado
federal, ex-chefe da Casa Civil do governo Lula — parecia tão à vontade
na cela quanto numa das passeatas de 1968. “Vou ficar aqui uns sete ou
oito meses”, calculou na entrevista à Veja. “Se for condenado, passo
mais cinco anos preso e depois vou para casa. Tá tudo bem.” Tudo bem?
Como assim?, franziu a testa o entrevistador. Foi então que o ex-capitão
do time de Lula, o ministro que fazia e desfazia nos campos e
catacumbas do PT, o herdeiro natural do espólio do chefe supremo
informou que se rendera à vocação inescapável: “Eu sou cadeieiro mesmo”.
Surto de sinceridade é isso aí.
O
líder estudantil decerto não sabia disso em agosto de 1968, quando
inaugurou a sequência de cinco temporadas na gaiola com o estágio de um
ano na penitenciária em São Paulo. Condenado pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento do Mensalão, o já ex-ministro reencontrou-se com a
rotina no cárcere em novembro de 2013. Um ano mais tarde, ao recuperar o
direito de ir e vir, a quarentena involuntária já lhe parecia
facilmente suportável. Aprendera a importância da disciplina, dos
cuidados com a higiene, das demonstrações de solidariedade — e havia
virado xerife de cela. Em agosto de 2015, devolvido pela Operação Lava
Jato ao presídio da Papuda, onde ficaria até maio de 2017, demorou menos
de 100 dias para festejar a aceleração da metamorfose que se consumaria
na terceira hospedagem no xilindró: era mesmo um cadeieiro.
Tornou-se
Ph.D. na especialidade com as duas temporadas seguintes, que o
mantiveram recluso entre maio e junho de 2018 e entre maio e novembro de
2019. Libertado pela fábrica de habeas corpus gerenciada por Gilmar
Mendes, tranquilizou-se de vez com a chicana que sepultou a
possibilidade do início do cumprimento da pena depois da condenação em
segunda instância. Se não saísse pela porteira que o Supremo Tribunal
Federal abriu para que Lula voltasse ao palanque, Dirceu estaria
animando o sistema penitenciário com palestras sobre o tema Como Ser
Feliz Encarcerado. Foi o que fez nas passagens pela Papuda e pelo
presídio de Pinhais, no Paraná, com plateias restritas a larápios de
fina linhagem que a Polícia Federal despertou para o pesadelo com
batidas na porta às 6 da manhã.
“Preso
primeiro chora, depois chama a mãe e seus santos”, ensina o doutor em
vida reclusa na carta enviada em abril de 2017 a um grupo de amigos. “O
trabalho, a leitura, o estudo e a escrita transformam a prisão em vida
produtiva e criativa, além de passar o tempo de maneira útil e
agradável.” Depois de informar que espelhos são proibidos no xilindró,
revela o truque a que recorrem os ansiosos pela contemplação do próprio
rosto: “É preciso usar um prato grande e limpo”. Mais: cadeia faz bem à
saúde: “Bebida, cigarro, gordura, ou é proibido ou não existe
simplesmente. O preso deve fazer exercícios todos os dias. No meu caso,
71 anos, é light. O importante é manter os músculos lombares fortes”. Só
nas linhas finais Dirceu arrola algumas queixas que, eliminadas,
aperfeiçoariam o sistema penitenciário. Por exemplo: “a corrupção ou
mesmo o controle dos presídios pelo crime organizado”.
Gaiola
também estimula o convívio dos contrários, acrescentaria Dirceu na
entrevista em que recomendou a Lula, preso em Curitiba, que solicitasse
transferência para a sexta galeria de Pinhais, onde atuara como gerente e
conselheiro. “Ele precisa conviver com outras pessoas”, argumentou. “Se
vier, o Lula verá que é uma convivência normal. Você conversa, aprende
muita coisa, as pessoas têm muito o que ensinar.” O entrevistado, por
exemplo, formou uma dupla bastante harmoniosa com Eduardo Cunha. Antonio
Palocci lembrou que se formara em medicina e tratou de atender
pacientes de todos os partidos, tendências e facções. Poucos optaram
pelo isolamento. “O Marcelo Odebrecht fazia ginástica oito horas por dia
e não convivia com os outros presos”, exemplificou. E nenhum dos alvos
da Lava Jato escapou do período de depressão que espreitava os
recém-chegados. A maior operação anticorrupção da história comunicara ao
país que, aos olhos de juízes honestos e corajosos procuradores
federais, a lei vale para todos. Mas ainda não sabiam disso políticos e
empreiteiros que se julgavam desde o berçário condenados à perpétua
impunidade.
Intimados
pela Justiça, os maiores empreiteiros do Brasil pousaram em Curitiba a
bordo de jatinhos particulares e fizeram reservas por uma noite em
hotéis cinco-estrelas. Acabaram dormindo em celas ou salas e ficariam
por lá meses ou anos. Marcelo Odebrecht, por exemplo, voltaria para casa
mil dias depois. Mesmo os deprimidos, contudo, logo encerravam a
cantilena da inocência. E começavam a examinar a ideia de recuperar a
liberdade pelo atalho da colaboração premiada, rebatizada de “delação”
por quem temia a expansão do oceano de provas que escancararam o
escândalo do Petrolão. Todos já estavam conformados com a confissão ou o
castigo quando as investigações se aproximaram perigosamente da cúpula
do Judiciário e da bandidagem com direito a foro privilegiado.
Divulgadas por um casal de vigaristas, as mensagens roubadas forneceram o
pretexto para que a aliança entre togas e ternos ouvisse o apelo de
Romero Jucá: era hora de estancar a sangria.
Qual
dos três times grandes triunfaria no Campeonato dos Bilhões restrito à
população carcerária? Sérgio Cabral, o supercraque de Bangu, tornou-se o
artilheiro mais temível ao declarar-se “viciado em dinheiro” para
justificar a roubalheira que até agora já lhe garantiu penas que
ultrapassam 300 anos de prisão. Mas os destaques restantes do time —
Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Eike Batista e Adriana Ancelmo —
estavam abaixo do nível alcançado pelos dois rivais. A equipe da Papuda
tinha Geddel Vieira Lima, Luiz Estevão, Henrique Alves, Joesley e Wesley
Batista — e, por algum tempo, contou com o onipresente Zé Dirceu. O
mesmo Dirceu que também brilhara no elenco de galácticos de Pinhais,
formado por lendas da alta delinquência como Eduardo Cunha, Antonio
Palocci, Marcelo Odebrecht, Léo Pinheiro, Aldemir Bendine, Gim Argello,
João Vaccari Neto ou Delúbio Soares. Se as coisas ficassem complicadas,
bastaria convocar Lula, o camisa 10 concentrado em Curitiba. Quem
venceria?
Jamais
saberemos. Neste Brasil do avesso, todas essas sumidades da
sem-vergonhice estão livres para o planejamento do próximo escândalo. Na
CPI, o cangaceiro engravatado Renan Calheiros promete prender e
arrebentar quem discordar da ciência e do relator. O ex-juiz Sergio Moro
foi estigmatizado como faccioso por um STF que é coiteiro de
governadores gatunos afundados no Covidão. E Lula cobra do governo atual
os hospitais que o palanque ambulante deixou de construir para erguer
os elefantes brancos que o enriqueceram antes, durante e depois da Copa
da Ladroagem. Até quando suportaremos a Ópera dos Cínicos? Até que o
povo brasileiro perca a paciência de vez.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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