Cada vez mais corrompidos pelo poder, Daniel Ortega e Rosario Murillo chefiam uma espécie de seita maligna que se passa por regime político. Vilma Gryzinski:
Como
uma cópia farsesca dos grandes tiranos da história, Daniel Ortega e
Rosario Murillo estão atingindo o paroxismo de um poder que vai ficando
cada vez mais sem limites.
Ele
é o presidente e ela é a vice – ou vice-versa, considerando-se como
Rosario, conhecida como La Bruja, influencia cada mínima, ou máxima,
medida do ex-líder guerrilheiro.
Dos
tempos românticos do sandinismo, o movimento revolucionário que se
formou para derrubar um ditador de folhetim, Anastasio Somoza, nada
restou. Muito menos da revolução ou das ideias de esquerda, que pelo
menos partiam do pressuposto da superioridade moral e de um desejo de
promover o bem comum.
Aliás,
nem antigos companheiros sandinistas escaparam da onda de repressão,
desencadeada ao longo desse mês, com a qual Ortega pretende chegar por
cima à disputa presidencial de novembro, tendo garantido a reeleição
vitalícia.
Com
popularidade de 20%, ele não está deixando margens da o azar. Estão
presos atualmente, na cadeia mesmo ou em prisão domiciliar, cinco
candidatos a presidente, incluindo Cristiana Chamorro, e um irmão que
tentou preencher a lacuna.
Os
dois são filhos de Pedro Joaquín Chamorro, o dono de jornal assassinado
pela ditadura Somoza, no tipo de estupidez que os tiranetes cometem
contra seus próprios interesses, e Violeta, a viúva que rompeu com a
frente Sandinista e conseguiu derrotar Ortega numa eleição presidencial –
um risco que ele resolveu nunca mais correr.
Mais
frequentadores da hospitalidade do regime: o presidente do maior banco
do país e o líder da principal associação empresarial, uma
ex-primeira-dama, um ex-vice-chanceler. E antigos companheiros como o
general reformado Hugo Torres, o Comandante Um da época da revolução, e
Dora María Tellez, a Comandante Dois (o Comandante Zero morreu no ano
passado de Covid-19).
“Tenho
73 anos, nunca pensei que a essa altura da minha vida estaria lutando
contra uma nova ditadura”, disse Torres num vídeo feito quando já sabia
que seria preso.
Torres
também sublinhou a grande ironia de ir em cana pela mãos do homem que
ele livrou da cadeia numa operação espetacular, quando um comando
sandinista de treze guerrilheiros invadiu a festa de natal na casa de um
ministro de Somoza e o tomou vários reféns importantes, negociando a
libertação de 60 presos políticos.
“Há 46 anos, arrisquei a minha vida para tirar Daniel Ortega e outros companheiros do cárcere”, disse Torres.
Atos
de ousadia fizeram a fama dos sandinistas, liderados por jovens de
classe média cheios de idealismo esquerdista. Outra característica do
movimento era a participação de um grande número de escritores e poetas.
Entre
eles, Rosario Murillo, filha de fazendeiros que havia estudado na
Inglaterra e na Suíça e voltado à Nicarágua para entrar de cabeça no
movimento. Com a aura da vitória surpreendente dos sandinistas, ela
parecia uma versão revolucionária de Bianca Jagger – até então, a
nicaraguense mais conhecida fora das fronteiras do país.
Hoje,
Rosario parece uma imitação barata de Frida Kahlo, sempre com roupas
coloridas, viseira e joias de prata em todas as extremidades corporais,
cheias de turquesas e outras pedras que dão “proteção”. Em lugar do
idealismo esquerdista, puxou Ortega para uma bizarra mistura de
xamanismo, catolicismo popular e toques do pensamento de Sai Baba, o
falecido guru indiano que também é cultuado por Nicolás Maduro.
A
ascensão de Rosario como toda-poderosa eminência parda – ou rosa, que
instituiu como cor nacional – é associada a um momento escabroso, quando
chamou de mentirosa e louca a própria filha Zoilamérica, por acusar
Ortega de abusar sexualmente dela desde que tinha onze anos.
A
“eternamente leal”, designou-a, oficialmente Ortega, como numa paródia
sinistra de Nicolae e Elena Ceausescu, o tétrico casal que acabou
fuzilado na Romênia, o único país onde o comunismo acabou com violência.
Ortega
hoje parece fisicamente frágil e com frequência desaparece dos
compromissos públicos por longos períodos – tratamento em Cuba,
especulam os boatos, talvez sonhando com um efeito Hugo Chávez, o homem
que deu petróleo de graça à Nicarágua, quando a Venezuela ainda podia
fazer isso, e enriqueceu o casal no poder e sua abundante prole, sete
filhos ao todo, excluindo-se Zoilamérica e um que morreu no grande
terremoto de 1972.
Foi
num desses períodos de afastamento que eclodiram os protestos
estudantis de 2018, conseguindo, inesperadamente, grande adesão de
outras camadas da população. Supostamente, Rosario Murillo assumiu o
comando e determinou: “Vamos com tudo”.
Em
discursos frenéticos nos canais de televisão controlados por seus
filhos, ela desfiava adjetivos contra os manifestantes. O El País
alinhou os mais usados: vândalos, pragas, delinquentes, vampiros,
terroristas, golpistas e satanistas.
A
reação foi além das palavras. A repressão, por forças policiais e
“turbas”, a tropa de choque à la Venezuela, resultou em mais de 330
mortes. Nada menos que 150 mil nicaraguenses deixaram o país, na maioria
indo para a Costa Rica – como em outros países centro-americanos, a
“exportação” de gente acontece em ondas regulares.
Daniel
e Rosario, como são chamados, sentiram-se mais fortes ainda – e sem
precisar ouvir um grito que se tornou comum na época dos protestos:
“Ortega e Somoza son la misma cosa”.
A
Nicarágua é um país pequeno e com extremos de pobreza. Só fica acima do
Haiti nesse quesito. Sem a Guerra Fria que ainda dominava as decisões
estratégicas dos Estados Unidos quando surgiu o sandinismo, tem
importância próxima de zero – mas certamente não passa em branco a
possibilidade de que seja uma das portas de acesso ao Atlântico que a
China está tentando abrir.
Os
planos de um canal entre o Atlântico e o Pacífico que seria aberto com
capital chinês para rivalizar com o do Panamá não avançaram. Pouca coisa
avança na Nicarágua, exceto os delírios do casal no comando de um
regime que virou uma espécie de seita.
“Uma
das características do recente autoritarismo latino-americano é o
descaramento, a falta de pudor. Comportar-se de maneira obscena com
absoluta tranquilidade”, disse o escritor venezuelano Alberto Barrera,
em artigo no New York Times.
Ele
conheceu Daniel Ortega quando tinha 18 anos e liderava uma brigada de
solidariedade ao movimento sandinista. Hoje, aponta as similaridades
entre o modelo chavista e o que acontece hoje na Nicarágua:
“Tem
grandes rasgos de nepotismo, sequestrou e solapou a autonomia dos
poderes, limita a imprensa independente, controla o aparato judicial, os
órgãos eleitorais e o Exército. É um modelo que permite que Ortega
possa se reeleger de maneira ilimitada enquanto seus adversários são
desabilitados, suspensos ou encarcerados”.
Com
a diferença que, na Nicarágua, “um mesmo ator escolheu desempenhar
papéis diferentes. Quem empunhou as bandeiras contra a ditadura e se
proclamou um orgulhoso ‘filho de Sandino’, é hoje, pelo contrário, o
mais perfeito e autêntico filho de Somoza”.
O
próprio ditador nicaraguense também era um “filho”, herdeiro da
dinastia criada por seu pai, o Anastasio Somoza origi
nal. O filho foi
morto no Paraguai em 1980, num atentado praticado por remanescentes da
guerrilha argentina. Tinha fugido um ano antes da Nicaragua.
É
o tipo de coisa que não acontece mais. Se não se perpetuarem no poder
como pretendem, deixando um filho como sucessor, Daniel Ortega e Rosario
Murillo, no máximo, acabariam num hipotético exílio junto com Nicolás
Maduro, quando poderiam louvar o guru Sai Baba até o fim de seus dias.
Como
gente sem consciência, ou que a enterrou definitivamente em algum lugar
do passado, com certeza não pensariam no mal que causaram não só a seus
países, como a toda a esquerda latino-americana, conspurcada
irreversivelmente pelo show de horrores praticado quando instalados no
poder.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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