A imagem do gay libertino é condenada como mero preconceito completamente destituído de base factual. Em vez disso, devemos acreditar que todos os gays sonham com uma família, fidelidade sexual entre marido e marido, sem divórcio e com vários filhos. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Continuemos
com as diferenças entre os progressismos de matriz europeia e
norte-americana. Este segundo é marcado por um tremendo puritanismo,
enquanto que o outro leva a bandeira da liberdade sexual à condenação da
família. É provável que isso tenha a ver com o fato de os Estados
Unidos serem um país religioso e a Europa, sobretudo a não-latina,
pender para o ateísmo.
O
tratamento das causas feminista e gay mostra essa diferença com
clareza. Nos Estados Unidos, a propaganda pró-casamento gay se insere na
chave da diversidade. Aplicada à família, a diversidade reza que as
famílias são todas iguais, exceto pelo fato de que os casais podem ser
homem-mulher, homem-homem ou mulher-mulher. A imagem do gay libertino é
condenada como mero preconceito completamente destituído de base
factual. Em vez disso, devemos acreditar que todos os gays sonham com
família, fidelidade sexual entre marido e marido, sem divórcio e com
vários filhos. Ou seja, a velha família de propaganda de margarina, só
que com casal do mesmo sexo. A obrigatoriedade da família de margarina é
exatamente o alvo dos movimentos de liberação sexual.
Por
adotarem, os gays são pintados ainda como anjos caridosos, que recolhem
dos orfanatos os filhos que casais heterossexuais desalmados largaram
lá. Exorcizada a figura do gay promíscuo, lança-se a do hétero
promíscuo, cujo desregramento lota os orfanatos. O fato elementar de que
gays não correm o risco de gravidez indesejada é deixado de fora desse
cálculo moralista e coletivista: os heterossexuais libidinosos lotam os
orfanatos enquanto anjos gays vão resgatar as criancinhas abandonadas.
(A propósito: descrever o ato de adoção como uma caridade é um tanto
quanto perturbador. Que pais se dizem caridosos por terem tido filhos? E
se casais brancos abastados adotam meninos negros, que tipo de
inferência racial se poderia tirar, caso queiramos seguir com
explicações coletivistas?)
Eu
já tive, na faculdade, um professor velho, “espartano” e anarquista,
contrário ao casamento gay. Achava que casamento servia para produzir
mão de obra para o capital, e ser gay era ser livre. De minha parte,
objetava que os heterossexuais já podem ser “livres” se quiserem, ao
passo que os gays é que não podiam se casar e adotar filhos se
quisessem. Eu objetava em vão: a família era uma coisa ruim em si mesma
porque existia para a formação de mão de obra. Coisa de foucaultianos,
para os quais tudo — os hospitais, as escolas, as prisões, as famílias —
pode ser explicado de uma maneira conspiratória.
Moralismo às avessas na família gay
Douglas
Murray é ateu, inglês, gay e conservador, autor de “A loucura das
massas”, já comentado aqui. Nesse livro, diz: “Agora que o casamento gay
existe, devemos esperar que os casais gays sejam monogâmicos, como se
espera dos casais heterossexuais?” (Nota minha: nos países de formação
puritana, onde divórcio existe, se espera tal coisa. Nos de formação
católica, onde o divórcio é recente, espera-se que os homens tenham
casos com discrição.) “Se não tiverem filhos para uni-los, faz sentido
esperar que dois homens ou duas mulheres que se conheceram antes dos
trinta anos se casem e transem exclusivamente um com o outro pelas
próximas seis décadas ou mais? Será que estarão dispostos a isso? E, se
não estiverem, quais serão as consequências sociais?” Em seguida, relata
o caso de um casal gay famoso que se esforçou muito para que não
descobrissem que tinham um relacionamento aberto.
Pois
bem: se no tempo do meu professor ser gay era ser sexualmente livre,
eis que agora, para os que seguem o progressismo puritano, ser gay é
virar um pai de família como outro qualquer, sob o mesmo escrutínio
público das comadres.
(Vale
frisar, porém, que é difícil reclamar da situação atual dos gays na
Inglaterra, dado que há décadas o país estava castrando quimicamente
Alan Turing. Por outro lado, o Brasil só teve lei contra gay na
Inquisição. Tirando isso, os homens podiam ter seus “sobrinhos”
rotativos em paz.)
Mulheres-incubadoras
Douglas
Murray trata também de um assunto mais espinhoso, que é a procriação.
Afinal, com avanços da tecnologia, os gays não precisam adotar para ter
filhos. Agora os gays ricos, como Elton John, podem contratar barrigas
de aluguel. Usa-se o sêmen de um gay mais o óvulo de alguma doadora e a
barriga de uma chocadeira profissional, que em geral não é a dona do
óvulo — do contrário, seria o mesmo que vender o filho biológico.
Cito
Murray: “Uma antiga piada gay dizia: 'Ainda não tivemos um bebê, mas
estamos tentando.' Mas eis aqui uma história [de celebridades gays
anunciando que vão ter um bebê] sugerindo o primeiro progresso nessa
área. E logo ficou claro que qualquer um que perguntasse 'Mas como dois
homens podem ter um bebê?' receberia esta resposta: 'Por que não? Seu
preconceituoso.' Naturalmente, um colunista do Daily Mail tropeçou nessa
mina terrestre. Porém, a pergunta ‘Como, exatamente?’ dificilmente era
injustificada. Uma das razões é que se concordara, em anos precedentes,
que excluir as mulheres de qualquer coisa era um sério faux pas. E lá
estavam dois homens gays excluindo completamente ao menos uma mulher –
que teve de ser relevante em algum ponto da jornada – da história. De
fato, excluindo uma mulher daquela que provavelmente é a mais importante
história da qual qualquer um pode participar. ”
Notem
bem que a expressão “barriga de aluguel” no Brasil é amiúde confundida
com a “barriga solidária”, prevista pela nossa lei. Aqui uma irmã pode
emprestar o útero para a outra, caso esta tenha complicações de
gravidez. Não há questões pecuniárias envolvidas. Nos países ricos, é
possível ter filho offshore, mandar o embrião feito em laboratório para a
barriga de uma indiana. Assim, o filho desses gays (na verdade, filho
biológico de apenas um desses gays) vai ter o DNA de uma doadora de
óvulo (se há vendedoras de óvulos, não sei) e será gestado por uma
grávida profissional. Sem mãe. (Vou confessar que não sei detalhes de
leis dos Estados Unidos e dos países europeus. Tentando descobrir o que
Paulo Gustavo e o marido fizeram, vi é possível alugar barriga nos
Estados Unidos.)
A
vida dessas grávidas na certa se parece muito com o “Conto da Aia”, da
escritora feminista não-identitária Margaret Atwood, em que as mulheres
perdem a liberdade e se tornam versões humanas de vacas parideiras e
leiteiras.
Então
ficamos assim: o ideal puritano progressista de uma família gay pode
ser construído sobre a vilificação da condição feminina, agora reduzida a
incubadora. No frigir dos ovos, o progressismo puritano inventou a
família de origem casta, que pode ser constituída em laboratório por
padres e freiras virgens.
E
uma consequência dessas práticas que nunca vi ser discutida é a
possibilidade de planejamento eugênico de crianças em laboratório. Se as
mulheres já estão imitando as vacas, por que a humanidade não imitaria
logo os bovinos, havendo seleção genética de garanhões reprodutores? E
se a personalidade é em parte herdada, não seria possível planejar o
nascimento de gente dócil?
Narrativas de oposição à liberação sexual
Eu
não creio que o meu professor foucaultiano tenha querido constituir
família até ler Foucault. Creio que algumas pessoas querem constituir
família, outras não. E que é assim desde que a humanidade é humanidade.
Volta e meia aparecem as narrativas que querem dizer que todos são
obrigados a constituir família, ou que todos são obrigados a não
constituir família. Aí, quem é mais intelectualizado e politizado, se
inteira dessas narrativas para transformar sua propensão em norma.
A
narrativa de que a família é um mal em si mesma pode ser usada para
apoiar o casamento gay. Sobretudo se o seu adepto for um ateu revoltado
com a Igreja. Aí a família tradicional é pichada, com dois homens – de
preferência, bem libidinosos – casando e descasando sem filhos, usando
drogas e curtindo à vontade. É uma imagem aparentada da feminista
enfiando objetos sacros em partes pudendas. Esse tipo de feminista tem
obsessão pelo aborto, e dela falaremos no próximo texto.
Por
outro lado, a narrativa de que ninguém pode ser um indivíduo solteiro,
até libidinoso, e ter uma vida realizada, também pode ser usada para
apoiar o casamento gay. Os gays então são colocados na cama de Procusto
do casamento tradicional mais puritano.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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