De alguma maneira, a imagem galileana do cientista vem desaparecendo da cabeça dos letrados. Em seu lugar, vem se inflando cada vez mais a noção do cientista como o burocrata da Verdade. Bruna Frascolla, para a Gazeta do Povo:
A
palavra “ciência” é capaz de evocar duas imagens completamente
diferentes: uns ouvem “ciência” e pensam numa curiosidade inabalável a
mover o Homem, que não se detém em sua busca por conhecimento nem mesmo
quando está sob a ameaça das chamas da Inquisição. Já outros ouvem
“ciência” e imaginam uma tabela gigante cheia de estatísticas, da qual
os especialistas tiram resposta para tudo. Trocando em miúdos, uns ouvem
“ciência” e pensam em Galileu; outros ouvem “ciência” e pensam num
asséptico burocrata de jaleco. Um tipo especial de burocrata que pode
ser definido como o burocrata da Verdade.
Embora
a maioria dos homens admire a ciência, poucos têm a pretensão de se
considerar cientistas. A maioria prefere cuidar da vida, ao passo que os
cientistas históricos tinham que encantar mecenas para arranjar um
sustento. Este dependia de sua boa vontade – era uma forma de
mendicância.
Por
isso, uma vez que as sociedades aprenderam a apreciar a ciência, o
Estado passou a ocupar o lugar do mecenas. Patrocina cientistas (por
meio de centros de pesquisa) e têm-nos a seu serviço. Nos centros de
pesquisa, em tese, deve haver autonomia intelectual frente ao Estado – e
é a isso que a noção de “autonomia universitária” deveria remeter, e
não à farra de sindicalistas político-partidários que bajulam as
autoridades do Estado com o fito de sugar o máximo do dinheiro dos
impostos com o mínimo de trabalho e responsabilidade.
O
cientista que está a serviço direto do Estado está mais para um
técnico; é responsável por resolver problemas da população. Se o
governante tem um problema crônico de recursos hídricos, não deverá
chamar o Cacique Cobra Coral, senão um grupo incumbido de solucioná-lo
com base em conhecimentos técnicos e científicos.
Idealmente,
um homem como Galileu teria seu lugar na sociedade de hoje em uma
universidade: autônomo, não deveria satisfação a políticos que
porventura não gostassem de suas teorias. Essa autonomia não implicaria
um autismo frente a sociedade, e ele poderia ser chamado para contribuir
com a solução de problemas que estejam em sua alçada.
O burocrata da Verdade
De
alguma maneira, a imagem galileana do cientista vem desaparecendo da
cabeça dos letrados. Em seu lugar, vem se inflando cada vez mais a noção
do cientista como o burocrata da Verdade. A Verdade está pronta e
acabada, os dilemas da liberdade não existem, e qualquer problema humano
pode ser resolvido pela “ciência”. O cientista, ou antes o
especialista, é como que uma pitonisa sem charme a decifrar
números-oráculos e traduzi-los em imperativos para os governados e
governantes: “tem que fazer isso, isso e aquilo”.
O
crescimento do burocrata foi tamanho, que se espalhou pela sociedade
civil. Hoje os cidadãos pagam em privado a essas figuras para se
especializarem dos seus problemas individualíssimos. Quem está infeliz
ou tem filho malcriado deve procurar psicólogos e psiquiatras para
resolverem o problema. Quem está gordo deve procurar um nutricionista
para fazê-lo emagrecer. Quem não arruma namorado, nem conseguiu
emagrecer, deve procurar os especialistas foucaultianos para encontrar
um jeito de culpar os homens, os médicos e o capitalismo, enquanto toma o
Rivotril.
Não
estou dizendo aqui que ninguém deve ir ao psicólogo ou ao
nutricionista: o estranho é as pessoas considerarem de primeira que os
outros devem resolver os seus problemas, em vez de cada um considerar o
próprio bom senso a primeira instância na tentativa de resolver os
próprios problemas. É à passividade que chamo a atenção. Passividade, e
falta de brios.
Mas voltemos ao burocrata da Verdade.
Uma
vez que a Verdade é conhecida, ele pode dividir os humanos em dois
grupos: o que aceitam a Verdade e os que não a aceitam. Como bom
burocrata, ele lida com governados, não com homens dotados de agência e
liberdade. O grupo dos que aceitam a Verdade (ou a “Ciência”, como
dizem) merece ser tutelado qual guaranis dóceis em mãos jesuíticas. Já o
grupo dos que não aceitam a Verdade deve ser enviado para uma fogueira
moral, condenado “obscurantista” e xingado de todos os nomes. E nesse
caso aquele que tiver a postura inquisitiva de Galileu será tratado como
um inquisidor – embora não tenha poder burocrático nenhum!
Uma
concepção de ciência é oposta à outra. Quando a autoridade política
resolve pontificar sobre a verdade, Galileu lhe é essencialmente
insubmisso. E um burocrata é, por definição, autoridade política.
Um mal entendido sobre a importância política de Galileu
Embora
seja, nessa circunstância, essencialmente insubmisso, Galileu não é
essencialmente um revolucionário político. Afinal, nem sempre a
autoridade política resolve pontificar sobre o que é a Verdade. Assim,
toda aura politicamente revolucionária que Galileu possa ter decorre do
fato de, à sua época, a autoridade política ter se arrogado esse
direito. Cabia à Igreja determinar o ordenamento do sistema solar, e os
reis eram submissos ao Papa. A figura de Galileu teve importância
política por ter posto as autoridades política e eclesiástica em seus
devidos lugares, no que concerne ao conhecimento.
Seu
feito foi mal interpretado. O Ocidente, sobretudo a matriz francesa,
tende a dividir a autoridade apenas entre Estado e Igreja, como se o
laicismo resultasse de uma batalha entre Yin e Yang, Razão e Fé, do qual
a Razão saíra vitoriosa. Não é isso. O laicismo consiste na redução do
poder do Estado, que deixa de mandar em assuntos da fé. O Rei não diz
mais: “seja católico e pague impostos!”. Diz: “seja você um católico ou
um protestante, pague impostos!”. Dada a sujeição dos chefes de Estado
ao Papa, era como se, antes de Galileu, o Rei dissesse: “seja católico,
acredite no geocentrismo e pague impostos!”.
Depois
de Galileu, o Ocidente começou a achar que era uma boa ideia separar
conhecimento e fé, antes mesmo de separá-la do Estado. No entanto, não
se percebe que é no mínimo tão importante separar autoridade estatal de
autoridade religiosa quanto separá-las da científica. Dai a César o que é
de César. O Reino da Ciência e o dos Céus têm cada qual sua regra de
soberania. Um homem pode ser tripla cidadania, só não pode confundir os
reinos.
O
maior perigo que livre investigação corre, hoje, é quando os burocratas
da Verdade tomam conta da lei e criminalizam a dúvida. Por isso,
atentemos ao que alimenta a ciência em sua origem: a curiosidade
independente de César e de Deus. Não precisamos ser todos cientistas,
mas podemos, talvez até devamos, nutrir um pouco da fagulha que anima o
cientista. Duvidemos da autoridade, e tentamos formular sempre bem o
nosso próprio juízo.
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