Carta da América
é o título do artigo publicado pelo professor João Carlos Espada no
jornal Observador, depois de uma "pitoresca viagem" pelos EUA. Sua
questão diz respeito à Europa: "conseguirá
a vaga conservadora em gestação na Europa acompanhar a robusta
linguagem liberal e anti-estatista da sua congénere americana?":
Nas últimas duas
semanas, fiz uma pitoresca viagem americana, com início na jovial
Universidade de Anchorage, no Alasca, e término na vetusta Universidade
de Harvard, em Cambridge, MA. Por um lado, nada de novo: a cada passo,
encontrei a vibrante sociedade civil e empresarial que sempre distinguiu
a América. Por outro lado, algo de muito novo: emerge dessa sociedade
civil uma profunda reacção conservadora-liberal contra a engenharia
social politicamente correcta.
Esta reacção
apresenta traços que também se vislumbram na Europa: reafirmação do
patriotismo, oposição à imigração descontrolada, reafirmação das
diferenças entre os sexos, recusa do abaixamento de padrões culturais e
morais. Por outro lado, estes traços, que poderiam ser designados como
conservadores, surgem profundamente associados à reafirmação das
tradições liberais americanas: redução da área de intervenção do estado,
liberdade de expressão e de religião, prioridade às instituições
espontâneas da sociedade civil, forte crítica às organizações
burocráticas e ao despotismo das suas regulamentações inovadoras.
Nos voos das linhas
aéreas do Alasca, o embarque é iniciado por um “convite aos passageiros
das nossas Forças Armadas, a quem agradecemos o serviço que prestam à
América”. Só depois são chamados os passageiros de classe executiva, ou
com necessidade de assistência especial. Em quase todos os lugares
públicos que visitei em Anchorage, encontra-se à entrada uma caixa para
donativos às Forças Armadas. A bandeira americana esvoaça nas portas de
inúmeras clássicas residências familiares de madeira. Os meus anfitriões
amavelmente acrescentaram na porta de sua casa uma bandeira portuguesa.
Na Universidade de
Anchorage, falei num jantar da Churchill Society local e na
“Constitution Day Lecture” (sempre a 17 de Setembro, data da primeira
aprovação da Constituição de 1787, em Filadélfia). Assisti, no dia
seguinte, a um concurso estudantil de 3 horas sobre o conteúdo da
Constituição. Em todas as ocasiões, o tema dominante foi o mesmo: “os
limites ao poder do estado, definidos na Constituição original, estão a
ser infringidos por uma burocracia central que quer dizer-nos como
devemos viver”.
Na Universidade de
Harvard, fiz uma breve apresentação do meu livro sobre “A Tradição
Anglo-Americana da Liberdade: Um olhar europeu”. Durante a hora
seguinte, uma enxurrada de perguntas e comentários incidiu quase sempre
sobre o mesmo tema: como o crescimento do estado está a atacar as
instituições autónomas da sociedade civil americana e o seu sentido de
dever, voluntariamente assumido.
A seguir, fui
convidado a assistir a um debate da “John Adams Society”, um dos muitos
clubes de debate estudantis. Foi a cereja no topo do bolo. Vestidos a
rigor, rapazes e raparigas tratavam-se respeitosamente por “The Right
Honorable Gentleman (ou Lady)” e debatiam uma magna questão: “Does
America need a new aristocracy?”.
Todos os que ouvi
concordavam na resposta: “sim, a América precisa (urgentemente) de uma
nova aristocracia”. Mas a aristocracia de que falavam era muito
diferente daquilo que no continente europeu ainda associamos à ideia de
aristocracia. Os jovens americanos queriam uma “aristocracia de
maneiras” ou “uma aristocracia do espírito”, não uma “aristocracia de
governo” — que continuam a considerar (tal como os fundadores da
Constituição de 1787) como o maior inimigo.
No final da viagem
americana, dei comigo a sorrir com os meus botões. Apesar de tudo o que
se diz sobre o fim do sonho americano, creio bem que ele está vivo e de
boa saúde. Em nenhum lugar ouvi críticas à globalização ou ao comércio
livre — apenas ao “despotismo burocrático”. Edmund Burke e Alexis de
Tocqueville teriam reconhecido nesta “nova” América o mesmo espírito que
conheceram no tempo deles: o indomável espírito de independência dos
“pequenos pelotões”, ou das instituições intermédias espontâneas da
sociedade civil — as famílias, as igrejas, as vizinhanças e outras
instituições voluntárias não centralmente desenhadas.
Duas questões podem,
no entanto, subsistir. A primeira diz respeito à América: conseguirá
este renascimento conservador-liberal, que tem dado por todo o país
esmagadoras vitórias eleitorais ao partido republicano, enquadrar o novo
presidente — que achou oportuno concorrer e ser eleito pelos
republicanos? A segunda diz respeito à Europa: conseguirá a vaga
conservadora em gestação na Europa acompanhar a robusta linguagem
liberal e anti-estatista da sua congénere americana?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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